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Ódio e orgulho: como viveram os filhos de oficiais da elite do nazismo

Rodrigo Casarin

09/03/2018 10h38

Heinrich Himmler e Gudrun em 1938.

Rosto angelical, loira, sempre com os cabelos trançados ou de rabinho… Gudrun tinha uma aparência meiga, era uma bela criança. Quando seu pai, separado da mãe, ia lhe visitar, saíam para caçar e passeavam pela floresta; ela apreciava colher flores e musgos. Gudrun adorava receber a visita de um tio de consideração, que teve um papel importante na sua infância, principalmente no desenvolvimento do seu imaginário. O apelido com o qual era tratada casava bem com sua frágil aparência: Püppi.

A simpática garotinha em questão é Gudrun Himmler, filha de Heinrich Himmler, homem forte do governo nazista e um dos principais responsáveis pelo Holocausto. O tio que frequentemente lhe visitava era Adolf Hitler. Püppi é uma das crianças alemãs que não apenas cresceram durante o nazismo, mas foram crias de oficiais que passaram anos derramando sangue principalmente de judeus e promovendo uma das maiores carnificinas da história humana. Como a criação e o legado funesto deixado pelo pai, que se suicidou em 1945, impactaram a vida de Gudrun?

Na visão da garota, o papai era um herói – algo tipicamente infantil, é verdade. "Não temos mais aliados na Europa, dependemos apenas de nós mesmos. E entre nós há franca traição. […] O clima geral está péssimo. […] A Luftwaffe [divisão da aeronáutica alemã] continua uma droga. Göring, esse fanfarrão, não faz nada. Goebbels faz muita coisa, mas está sempre querendo aparecer. Todos recebem medalhas e condecorações, menos meu pai, que devia ser o primeiro a recebê-las. O povo todo olha para ele. Mas ele se mantém sempre nos bastidores, nunca vai para frente do palco", registrou em seu diário.

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Acontece que o herói de Püppi foi também um dos maiores monstros do século 20. A garota só foi saber qual era o real trabalho de Heinrich após o final da Segunda Guerra Mundial, por meio dos Aliados e da imprensa estrangeira. Por mais que o novo governo alemão enfatizasse que "nossa jovem democracia não faz as crianças pagarem pelas culpas de seus pais", carregar o sobrenome Himmler passou a ser um fardo para Gudrun: era quase impossível arrumar trabalho e ser tratada com a mínima dignidade tendo consigo uma marca dessas. Acontece que Püppi jamais renegou o nome, jamais renegou seu herói da infância.

Passou a colecionar qualquer objeto que fizesse referência a Himmler e aos nazistas. Ignorando todos os fatos históricos, dedicou a vida a defender seu pai e seu tio do bigodinho bizarro e, consequentemente, os ideais nos quais acreditavam. Ajudou a criar em 1952 a Juventude Viking (organização que espelhava a Juventude Hitlerista e foi banida da Alemanha em 1994), casou-se com um simpatizante do nazismo, passou a auxiliar os oficiais nazistas que sobreviveram à guerra e se tornou militante de um partido alemão de extrema-direita. Como Püppi reagiu ao descobrir quem o pai realmente era? Tentando dar sequência ao funesto legado que seu herói deixou.

"Gudrun conheceu de Himmler apenas o lado 'bom pai de família'; o outro aspecto de sua personalidade só lhe foi contado pelos livros e pela imprensa. A negação das informações exteriores à própria experiência, qualquer que seja sua legitimidade, parece o único caminho para alguns descendentes. Qualquer outro seria traição", analisa Tania Crasnianski em "Filhos de Nazistas" (Vestígio). Tania, ela própria neta de um oficial nazista, investigou como oito pessoas conviveram com o fato de terem como pais alguns dos principais colegas e aliados de Hitler.

Mas se Gudrun optou por venerar seu pai, há quem tenha seguido direção oposta.

Ódio

Niklas Frank tinha apenas sete meses quando seu pai, Hans Frank, foi nomeado governador-geral da Polônia. No discurso de posse, deixou clara a sua missão: "É um prazer ter finalmente a chance de atacar fisicamente a raça judaica. Quanto mais morrerem, melhor". O maior objetivo era aniquilar os quase 70 mil judeus que viviam na Cracóvia.

Os Frank levavam uma vida de luxo, com frequência davam festas regadas a vinhos e conhaques franceses e enubladas pela fumaça de charutos cubanos. Recebiam pessoas importantes do Terceiro Reich em casa, bem como músicos, atores de cinema e cantores de ópera. Estiveram nas mãos da família Frank quadros de Rembrandt, Rafael e até a "Dama com Arminho", uma das obras mais famosas de Leonardo da Vinci. Na memória de Niklas, no entanto, também ficaram gravadas algumas cenas tenebrosas, como a vez em que foi com sua mãe a um gueto de judeus que beiravam a morte para que ela pudesse comprar bons espartilhos.

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"Minha mãe era cínica e covarde. Era louca por peles e ia de Mercedes ao gueto, acompanhada por uma escolta da SS, comprar por uma miséria roupas que, decididamente, aqueles judeus sabiam confeccionar maravilhosamente. Ela não estava nem aí para o fato de eles morrerem", diria Niklas no futuro, quando adulto. O filho do oficial nazista se tornou jornalista, escritor e passou a vida tentando descobrir tudo em que seus pais estiveram metidos. Tomando conhecimento da verdade, passou a verdadeiramente a odiá-los. Tentou matar a mãe em 1959 e dedicou boa parte de sua carreira a escrever sobre o Hans – dentre seus livros está "O Pai: Um Ajuste de Contas".

"Dama com Arminho", da Da Vinci.

"A ausência de remorso no pai é insuportável para Niklas. 'Sua culpa é nossa herança', diz, e não tem palavras suficientemente fortes para descrever o pai, esse 'assassino' que ele considera 'fraco', 'fútil', 'hipócrita', 'covarde' e um patético puxa-saco. 'Acontece que foi esse covarde que construiu as câmaras de gás', continua". É o que registra Tania em sua obra. No livro há uma referência ainda mais enfática de Niklas a Hans:

"Odeio esse desgraçado, que está ardendo no inferno e me obceca. Não tem um dia que não pense nele com pavorosa impressão de ser uma marionete cujos fios ele ainda manipula. […] Mesmo criança eu já tinha a convicção de pertencer a uma família criminosa. Logo vi as fotos dos campos, na primeira página dos jornais: montanhas de corpos nus, esqueletos vestidos com farrapos; e aquela imagem das crianças que estendem seus punhos para mostrar seu número. […] Tinham a minha idade, foram presas ali do lado do castelo polonês onde meu pai acumulava ouro e onde eu bancava o pequeno príncipe om meu carrinho a pedal".

Onde as histórias de reencontram

Na introdução de "Filhos de Nazistas", a autora registra que essas crianças, por conta de seus nomes, ficaram marcadas para sempre "com o selo da infâmia" e levanta algumas questões pertinentes: "Devemos nos sentir responsáveis, ou mesmo culpados, pelo que nossos pais fizeram? A história familiar, inevitavelmente, forma nossa personalidade durante a infância e a juventude. Quando é tão sinistra, uma herança não pode deixar de ter um peso, por mais que se costume admitir que os filhos não devem ser considerados responsáveis pelos erros de seus pais. O que se tornaram esses filhos de dirigentes nazistas? Como lidar com uma herança tão macabra?"

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Como as histórias de Gudrun e Niklas mostram, caminhos bem distintos foram trilhados. Enquanto ele quis saber toda a verdade e passou a odiar seus pais, ela se manteve isolada em sua própria bolha, onde seu pai permanece sendo um herói. De maneira pragmática, contudo, as duas trajetórias, que partem de um drama semelhante, reencontram-se em um ponto. Se a pequena Püppi passou a cultivar a memória nazista e a apoiar a extrema-direita depois de adulta, Niklas faz um importante alerta:

"Acham mesmo que a nostalgia do Reich desapareceu? Tudo foi feito para impedir que o regime fosse julgado, que os filhos questionassem seus pais, que se procedesse a uma sincera introspecção. Ainda pagaremos por isso! Felizmente, os meios de comunicação do mundo inteiro mantêm em estrita vigilância e se convulsionam assim que um turco é atacado ou um cemitério judeu profanado. Senão, tudo poderia recomeçar. Amo o povo alemão, mas não tenho nenhuma confiança nele". E pelo que temos visto pelo mundo, onde a intolerância parece não parar de crescer, anda realmente difícil confiar em algum povo.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.