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Desempregado? Só Pra Contrariar é a trilha sonora do “Manual da Demissão”

Rodrigo Casarin

06/02/2018 09h40

Em 1994, o Só Pra Contrariar, liderado então por Alexandre Pires, lançou o álbum "Meu Jeito de Ser", que apresentou ao mundo a canção "Essa Tal Liberdade". Na melancólica letra, o narrador se queixa de não conseguir aproveitar a liberdade após o fim de um relacionamento; na solidão, consegue pensar apenas na mulher – ou homem – que o deixou. "Eu nunca imaginei sentir tanta saudade, meu coração não sabe como te esquecer", lamenta, para depois confessar que andou errado, pisou na bola e trocou quem mais amava por uma ilusão. "Mas a gente aprende, a vida é uma escola", crê, confiante, enquanto choraminga.

A narradora e protagonista de "Manual da Demissão" (Record), de Julia Wähmann, também não sabe o que fazer com essa tal liberdade. A condição que perturba a personagem, no entanto, não nasce apenas do término de um relacionamento amoroso, mas também, como o título da novela antecipa, de uma demissão. Junto dela, outros colegas devem desocupar suas baias de trabalho, encaixotar os pertences e sumir o quanto antes da corporação onde a personagem trabalhava há anos. A partir disso, Julia constrói uma narrativa que é a cara do Brasil de 2014 para cá, período no qual a quantidade de desempregados cresceu exponencialmente. O que fazer quando se é colocado para o olho da rua?

Foto dos integrantes do Só Pra Contrariar no álbum "Meu Jeito de Ser".

"Manual da Demissão" escaneia bem esse difícil momento da vida e, focando em alguém da classe média, sugere certas ações: comemorar a suposta liberdade e usar parte da grana recebida por conta da demissão para beber cervejas artesanais, enfrentar toda a burocracia para dar entrada no seguro desemprego, lamentar-se com os amigos que estão na mesma situação – e há cada vez mais amigos na mesma situação -, ficar triste ao vê-los se debandando para fora do país – para Portugal, principalmente -, entrar em depressão quando a situação começa a apertar e, enfim, aceitar trabalhos que paguem qualquer trocado enquanto não se arruma um emprego decente, se é que em algum momento voltará a existir empregos decentes no país.

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Uma cena já no final do livro é bem representativa. A narradora faz um encontro com amigos demitidos em sua casa. Então, vizinhos também desempregados são atraídos para a "festa" por conta da música que é a "trilha sonora do fracasso", justamente o já citado sucesso de Só Pra Contrariar (irônico que o grupo seja chamado pelos fãs de SPC, justamente a sigla da empresa de proteção ao crédito onde o nome de muitos desempregados acaba indo parar).

Julia Wähmann.

"Logo outros vizinhos apareceram, e todos exibiam o ar inconfundível de quem estava passando tempo demais em filas: a epidemia tinha atingido quase todos os moradores do meu prédio, que, desempregados, se juntaram a nós. A noite se transformou numa festa melancólica, bonita e absolutamente desafinada, cujo encerramento, verdadeira catarse coletiva, foi uma cantoria em que extravasamos nossos ódios por todos os patrões que ficaram malucos".

"A palavra 'emprego' caía em desuso"

Disse que Júlia retrata bem a classe média porque me parece que um trabalhador rico não teria muito com o que se preocupar ao ser mandado embora – afinal, se é rico, dinheiro não é um problema. Já um pobre que precisa literalmente ganhar o pão de cada dia jamais poderia se dar aos luxos que a protagonista de "Manual da Demissão" se dá. Então, apostando no humor e no sarcasmo, embalada por referências que vão de The Smiths ao já citado Só Pra Contrariar, passando por Legião Urbana e Roberto Bolaño (escritor chileno, não confundir com o intérprete do Chaves), a novela é um divertido e oportuno livro conectado com a realidade do país e de parte dos seus cidadãos. "Manual da Demissão" trata do nosso momento sem que a narrativa acabe se transformando em um berro político, uma análise sociológica ou algo do tipo.

"A essa altura, o presidente que substituíra a presidente propunha reforma nas leis trabalhistas. As pessoas das redes sociais pareciam mais indignadas do que a população, que talvez já tivesse sacado que a discussão sobre leis trabalhistas fosse inútil, uma vez que não havia trabalho. A palavra 'emprego' caía em desuso. Um dia acordaríamos e a lógica vigente seria oposta à que até então regia as leis da sociedade: os empregados seriam minoria. A classe trabalhadora se transformaria num grupo para o qual se olha com desconfiança, receio, como se fossem pragas, ou ameaças à maioria desempregada. Os portadores de carteira assinada seriam tema de programas de jornalismo investigativo", supõe a protagonista.

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Carioca, autora também de "Cravos", "André Quer Transar" e "Diário de Moscou", em "Manual da Demissão" Julia é feliz optar pelo riso e certa leveza para tratar do caos que é a falta de trabalho – e estamos precisando mesmo de algum alívio cômico por essas bandas cada vez mais carrancudas. A autora também é oportuna ao esculachar hábitos corporativos – como os "casual fridays" – e nomear cada capítulo com chavões usados tanto no meio empresarial quanto por aqueles que buscam consolar quem passa por um baque como o desemprego: "Sonhar não custa nada", "Manda quem pode, obedece quem tem juízo"…

Pela maneira que a política e a economia do Brasil têm andado (ou não têm andado), é bom que todos leiam "Manual da Demissão", seja para pegar umas dicas e colocá-las em prática imediatamente, seja para estar preparado para quando o pé na bunda vindo do RH chegar com a indesejada tal liberdade.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.