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Milton Hatoum: Vivemos numa espécie de caricatura da democracia

Rodrigo Casarin

31/01/2018 10h27

Foto: Marcos Leoni/ Folhapress.

Levou quase 50 anos para que Milton Hatoum se sentisse distante o suficiente de parte de suas memórias a ponto de transformá-las em um romance. Só com esse distanciamento que conseguiu escrever "A Noite da Espera" (Companhia das Letras), o primeiro de uma série de três livros na qual que reconstrói ficcionalmente o que viveu em Brasília, São Paulo e Paris na juventude e começo da vida adulta. O leitor, no entanto, não deve esperar um relato autobiográfico ou uma mera autoficção. Por meio de Martim, seu protagonista, um jovem distante da mãe e que não se entende com o pai, Hatoum borra completamente qualquer linha biográfica.

"Se eu escrevesse na primeira pessoa a minha experiência seria muito mais pobre do ponto de vista da construção da ficção. O Martim vem justamente para instaurar esse distanciamento. A única coisa que tenho em comum com ele foi ter morado em Brasília e estudado na mesma escola. Ele foi separado da mãe, tem uma relação supercomplicada com o pai, tem uma namorada que é militante e atriz convicta… Isso não faz parte da minha vida", explica Hatoum em entrevista ao blog.

Vencedor de diversos prêmios, colunista de jornais de circulação nacional e traduzido para quase 20 línguas, Hatoum é um dos principais escritores em atividade no país. "Dois Irmãos", um dos seus romances mais famosos, esteve em evidência no ano passado após ganhar uma adaptação feita pela Globo. Além disso, é autor de títulos como "Relato de um Certo Oriente", "Órfãos do Eldorado" e "Cinzas do Norte", que, no papo abaixo, aponta como uma espécie de ensaio para o que viria a fazer nessa trilogia.

Em "A Noite da Espera", Martim, vivendo em Paris, lembra dos seus tempos de adolescente universitário em uma Brasília dominada pelos militares que instauraram a ditadura no Brasil a partir de 1964. Com seu grupo de amigos, o personagem busca por formas de resistir e enfrentar o totalitarismo enquanto lida com questões caras a alguém de sua idade, como as turbulências amorosas e a busca de sentidos para a própria existência, algo que encontra principalmente na literatura.

Na conversa a seguir, que aconteceu em um café de São Paulo na manhã do último sábado, o escritor fala sobre as escolhas estéticas que fez para a obra – como as transições temporais e a opção por um texto mais fragmentado –, da atual situação política do Brasil e questiona alguns caminhos tomados pela esquerda. Para Hatoum, vivemos "numa espécie de caricatura da democracia, com um sistema político falido, partidos falidos, com quase todos envolvidos em grandes em esquemas de corrupção" e "não é pelo mero consumo de bens supérfluos que se dá cidadania aos desvalidos".

Por que teve vontade ou resolveu que era hora de contar essa história do Martim?

Fazendo eco àquela afirmação do [escritor argentino Jorge Luis] Borges, que o esquecimento faz parte da memória, só agora, quase meio século depois, que eu esqueci muita coisa do que vivenciei naquela época. Tentei escrever essa história outras vezes, como quando morei na Espanha [no começo da década de 1980], mas não deu certo, não foi adiante. Eu ainda estava muito preso à minha experiência.

Esse é um projeto que ficou na minha cabeça, que adiei por muito tempo. Consegui escrever "Cinzas do Norte", que, para mim, foi um ensaio importante, uma passagem entre o "Dois Irmãos" e este "A noite da Espera". Um ensaio no sentido de enfrentar a questão [das passagens autobiográficas]. "Cinzas do Norte" é um romance que me deu muito trabalho e que, acho, está no centro da minha obra, mais até do que o "Dois Irmãos", por mais que este seja mais conhecido, mais lido.

E por que a opção por uma trilogia?

Seria exagero publicar um livro de 900 páginas. Seja pelo leitor, seja pelo preço, não caberia. Percebi, então, que havia cortes possíveis e coerentes para três volumes. Antes de terminar o "Órfãos do Eldorado", montei esse painel amplo e comecei a escrita pelo terceiro, que fala de uma época mais recente, sobre a minha vida em Paris. Escrevi e entreguei para o Luiz [Schwarcz, editor da Companhia das Letras], que se interessou pela história do Martim e do grupo dele.

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Mas, como sempre, foi mais difícil encontrar a forma do livro do que o conteúdo. A forma que define as linhas gerais da narrativa. Pensei em escrever em terceira pessoa, mas não caberia. Também não caberia trabalhar com capítulos muito longos. Esse pequeno grupo do qual o Martim faz parte é uma partícula de uma geração, porque nem toda a minha geração estava envolvida com a questão política. Aliás, pouca gente estava se você considerar toda a população brasileira. Fazíamos anotações o tempo todo, desenhos, leituras… Os militares podiam proibir tudo, mas nossos diários, não, porque eram íntimos, escritos na profunda solidão, e expressavam nossos desejos, sonhos. Então, fui por esse lado das anotações, dos diários, das cartas… Na verdade, o livro é um antidiário, porque o tempo é muito fragmentado.

Interessante você lembrar que uma minoria que participou de alguma resistência à ditadura. Até por normalmente essa minoria contar a história como a conhecemos, a impressão que às vezes passa é de que havia algum movimento muito mais amplo.

É uma falsa impressão pensar que todo jovem brasileiro estava diretamente ou indiretamente implicados nessa resistência. Eram mais os universitários, pessoas de algumas escolas… Então, procurei fazer uma pesquisa de vida: como era um jovem, como era outro. Todos eles estavam buscando um sentido para a vida, exatamente como é hoje, exatamente como é sempre.

Essa opção por capítulos mais breves, com a temporalidade fragmentada, acabou resultando, na minha opinião, em uma estática que tem muito a ver com o nosso tempo.

Tem mais a ver com o nosso tempo mesmo. Do ponto de vista formal, estético, foi uma mudança no meu trabalho. Mas o "Cinzas do Norte" já apontava pra isso, nele também tem cartas, anotações… Só que é um ritmo de um fôlego mais longo, com capítulos maiores.

Em certo momento do livro, os garotos discutem se devem ou não encenar uma peça com um general na plateia que poderia prendê-los tão logo o espetáculo acabasse, se é que acabaria. Um sugere adiar a estreia, outro diz que seria uma covardia não subir ao palco. Quando fugir de um confronto desses é covardia e quando é a melhor estratégia para que se consiga algo maior em outra oportunidade?

Isso aconteceu de fato, essa cena existiu, meus amigos a vivenciaram. Só que o general não era um homem culto, ele não percebeu que a peça falava sobre o Brasil. Essa peça é representação no romance de algo que o próprio romance está falando. Ali há as divergências do próprio grupo: o diretor que aceita os cortes da censura, o Lázaro que é contra, a cumplicidade do Lázaro com a Dinah, que na hora da encenação ignora os cortes e encena o roteiro original, algo que os outros consideram uma traição… E, para o Martim, há uma dupla traição, já que ele acha que a Dinah está o traindo com o Lázaro.

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O confronto mais bruto é inconsequente. Não vivemos em uma ditadura, tanto que estamos conversando e isso será publicado. O confronto deve ser baseado em uma argumentação forte. Contra a extrema-direita, as palavras mais duras e bem argumentadas funcionam melhor do que o slogan ou o embate bruto. Eu sempre procuro a argumentação, esse é meu lado mais racional. É a força da imaginação que constrói uma ficção. Um romance sem imaginação não convence. Mas, na vida, é preciso argumentar a partir de uma leitura mais lúcida da realidade, do momento histórico. Argumentar contra a candidatura da extrema-direita, por exemplo, é urgente. É preciso mostrar por que isso seria catastrófico para o povo brasileiro e para as instituições.

Mas hoje as pessoas parecem se atrair mais por slogans do que por algum embate complexo de ideias. Como você encara isso?

Sempre volto à questão da formação, por isso que o romance de formação me interessa muito. Acho que falta a uma parte razoável da classe média uma compreensão da nossa história. É absolutamente inexplicável que um milhão de pessoas tenha ido às ruas para pedir o Impeachment da Dilma e nenhuma tenha ido pedir a punição deste governo, que tem nove ministros denunciados por crimes, além do próprio presidente. São pessoas que, por uma formação precária ou mesmo por total descaso e indiferença em relação aos milhões de brasileiros miseráveis e subalternos, resultam numa sociedade muito preconceituosa. Essas pessoas não querem ver os problemas reais do Brasil, e muitas têm medo de uma vida mais digna para todos, que seria o ideal democrático, com oportunidades iguais para toda população na educação, na saúde… É um erro chamar o Brasil de democracia. Nós não vivemos numa democracia.

Nós não vivemos numa democracia, nós não vivemos numa ditadura. Vivemos no quê?

Numa espécie de caricatura da democracia, com um sistema político falido, partidos falidos, com quase todos envolvidos em grandes em esquemas de corrupção. Uma parte – não falo de todos porque é um grande erro generalizar – da classe média e da elite não tem compreensão profunda da carência do outro. Nossa grande questão é a seguinte: quando vamos ver esse outro como um igual? Um ser humano conterrâneo que merece os mesmos direitos que nós privilegiados. E por que não percebemos isso? Tudo isso é falta, primeiro, de sensibilidade, de ter um olhar crítico e compassivo. E segundo, uma falta de compreensão histórica, de leitura.

Flávio de Barros. Guerra de Canudos: "Prisão de jagunços pela cavalaria" (legenda original atribuída pelo autor). Canudos, BA, 1897. Arquivo digital / Acervo IMS Museu da República.

Trazendo o livro de volta, o que há de semelhante no país hoje com o que havia no período em que a narrativa se passa?

São realidades diferentes, mas com muitos paralelismos. É diferente na medida em que temos liberdade para falar, para criticar e a imprensa não é censurada (ainda). Mas há coisas similares, como a impressionante violência. A matança de jovens já seria um grande motivo para sairmos às ruas e protestarmos contra esse verdadeiro genocídio que está acontecendo. Essa violência, que está no cotidiano brasileiro, também tem sua história. Agora mesmo o Instituto Moreira Salles publicou um livro excelente sobre isso, com textos de vários sociólogos e historiadores ["Conflitos: Fotografia e Violência Política no Brasil 1889-1964", também uma exposição em cartaz na sede do Instituto no Rio de Janeiro]. A República Velha foi inaugurada com o genocídio de Canudos, e isso não parou. Se formos indiferentes à violência e à profunda desigualdade social, ao racismo, não chegaremos a um esboço de civilização.

Como se sente quando houve gente contemporizando essa violência, a ditadura, dizendo que os militares "não foram tão ruins assim", que "só perseguiam terroristas", justificando a tortura…?

Isso não se limita à ditadura ou à caricatura de democracia que vivemos. Isso faz parte do ser humano que cultiva o ódio, o mal e a crueldade. O Graciliano Ramos já falava em "Memórias do Cárcere" [livro de 1953], de modo irônico, sobre o pequeno fascismo tupiniquim. Isso sempre existiu, e não é só no Brasil. Essas reações agora são mais visíveis por causa das redes sociais. Nosso lado mais demoníaco, cruel e fascista está mais evidente, mas não é específico deste momento. Quando falo da importância do argumento, é até para explicar para essas pessoas que não é assim que funciona, que não é assim que deve ser. Mas muitos deles me parecem não aceitar qualquer argumentação.

Isso de não aceitar argumentos não me parece uma exclusividade dos grupos de direita hoje, não?

Não, não é. Há uma esquerda dogmática que tem horror à crítica, à autocrítica, que resiste às mudanças. O Fernando Haddad deu uma entrevista recentemente dizendo que a esquerda tem que ser repensada, ele está totalmente certo. Algumas crenças da esquerda já não cabem mais no mundo de hoje. Particularmente, penso que qualquer projeto de esquerda que passe por alianças com partidos do centrão ou com o PMDB será um fracasso. E esse dogma da esquerda também é criticado no "A Noite da Espera".

Ia justamente retomar para um ponto da narrativa que talvez tenha a ver com isso. Quando a UNB está para ser fechada, um dos garotos defende que o Tribo, jornal de artes criado pelo grupo de amigos de Martim, precisa ser mais incisivo em seu posicionamento. Quanto mais crítico o momento, mais difícil de fazer com que o outro acredite em algo de cunho artístico, não panfletário?

A arte pode fazer muita coisa quando a ideologia não é explícita. A literatura convence através da forma, da linguagem. O romance é político, mas pela forma estética, até mesmo negando a sua mensagem ideológica e panfletária. E é essa discussão na Tribo: alguns preferem falar de poesia, literatura, cinema, que têm um subtexto político, mas não é explícito.

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[Naquele tempo] existia um grupo muito dogmático, que não ouvia. O dogmático se fecha totalmente porque o mito [no qual acredita] é uma construção fechada, o mito é o tudo e o nada. O romance transforma o mito em narrativa. Quando você não questiona as grandes certezas, você não escuta. Ou não escuta para não questionar as grandes certezas. Se nos anos 1970 eu era a favor de uma certa visão de sociedade, hoje algumas daquelas certezas foram derrubadas ou desconstruídas. Acho que o romance trabalha um pouco com isso. E com a hesitação, com a dúvida.

Olhando para sua própria história, quais antigas certezas foram desconstruídas?

Já fui mais entusiasta de uma economia centralizada, por exemplo, e hoje acho que muitas estatais poderiam ser privatizadas. Não é isso que define o bem-estar da população, muito pelo contrário, muitas delas são cabides de emprego. A esquerda perde muito tempo com esse mito das estatais. O que se deve privilegiar é o foco na qualidade da educação, saúde e transporte público, aí que está o nó, porque a direita não está interessada nisso. Essa deveria ser a bandeira da esquerda: como transformar o brasileiro mais pobre? Não é pelo mero consumo de bens supérfluos que se dá cidadania aos desvalidos. Não é ter acesso ao luxo, mas ter acesso à escola de qualidade, atendimento de saúde de qualidade e um transporte de qualidade.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.