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Aos puritanos: o livro “limpinho”, comportado e insosso do Marquês de Sade

Rodrigo Casarin

10/11/2017 10h12

Sadismo: "distúrbio psíquico caracterizado pela obtenção de prazer sexual com a humilhação ou o sofrimento do outro". É essa a definição que o dicionário "Houaiss" traz para o verbete que nasce do nome, da obra e da trajetória pessoal de Marquês de Sade, francês que viveu entre 1740 e 1814 e passou quase metade da vida atrás das grades, acusado de promover orgias e outros acintes sexuais para a época.

Dentre os principais livros de Sade estão "Os 120 Dias de Sodoma", "Justine" e "A Filosofia na Alcova". Neles, os limites do sexo são levados a níveis extremos, com a dor e a humilhação servindo de fontes para o prazer. Explícitas, as cenas do francês escritas há mais de dois séculos ainda podem chocar nos dias de hoje, bem como sua história: relatos apontam que Sade, na prisão e sem ter acesso a papéis e algo para escrever, cunhava sua literatura até mesmo nas paredes, utilizando fezes ou o próprio sangue.

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Horrorizado? Calma, Sade também tem seu lado "limpinho", que pode agradar os puritanos de plantão. É justamente essa faceta do autor que está em "Novelas Trágicas", que a Carambaia acaba de lançar. O volume traz um ensaio e cinco contos até então inéditos no Brasil escritos pelo autor entre 1787 e 1788, enquanto estava preso na Bastilha. Segundo estudiosos, a ideia de Sade era, por meio desses escritos, alcançar o reconhecimento literário e convencer os franceses de que textos obscenos que circulavam clandestinamente e sem assinatura não seriam de sua autoria.

Atendendo às expectativas dos patrulheiros da época, os contos não possuem as cenas sexuais e de tortura que transformaram Sade em um dos autores mais renomados da história. Aliás, mais do que a ausência do ato, ao longo das páginas de "Novelas Trágicas", não há uma nádega, uma vagina ou um pênis sequer, tamanho o pudor empregado.

Sim, comparado aos pesados clássicos do Marquês, os contos do volume são um tanto insossos. Isso não quer dizer que as histórias sejam habitadas apenas por personagens virtuosos e cenas solares, no entanto. Há ali violência física e psicológica, assassinatos, uma mãe que casa com o filho sem saber e até um pai que cria e educa a sua filha para que ela se torne, na juventude, a amante que sempre sonhou em ter.

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As narrativas "surpreendem não por serem (ao menos aparentemente) binárias, opondo o Bem contra o Mal, mas sobretudo por mostrarem o triunfo da sensibilidade e da compaixão (Bem) e a derrota da crueldade e da libertinagem (Mal)", aponta no posfácio André Luiz Barros, professor de Teoria da Literatura da UERJ e tradutor da obra, mostrando como os textos iam ao encontro do que era esperado de escritores enquanto a Revolução Francesa estava sendo fomentada.

Ou seja: narrativas virtuosas, com uma clara lição de moral. Um porre. "Novelas Trágicas" tem seu valor justamente por mostrar esse outro Sade, que tentava algum tipo de aceitação em sua época. Contudo, é muito melhor ficarmos com os escritos clássicos do Marquês, aqueles que continuam horrorizando muita gente por aí.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.