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Laika: lançada ao espaço para morrer e servir de propaganda aos soviéticos

Rodrigo Casarin

05/09/2017 09h11

Em 1957, a União Soviética estava uns bons passos adiante dos Estados Unidos na corrida espacial. Após colocarem o primeiro satélite artificial na órbita da Terra, o premiê Nikita Khrushchov ordenou a Serguéi Korolióv, engenheiro-chefe que encabeçava projetos com foguetes, que acelerasse sobremaneira a criação do equipamento que levaria o primeiro ser vivo para fora de nossa órbita.

A equipe teria um mês para desenvolver um novo veículo, que deveria ficar pronto para as comemorações do 40º aniversário da Revolução Russa. Apesar do pouco tempo, a vaidade do engenheiro aliada à pouca disposição do mandatário para ouvir um "não" foram os principais propulsores de dias insanos de trabalho que culminaram com o lançamento de uma cachorrinha para o espaço.

Sim, estamos falando da famosa Laika. Há pouco a Barricada lançou uma graphic novel que narra a história da cadela: "Laika", roteirizada e ilustrada pelo britânico Nick Abadzis, que por conta do trabalho levou o Eisner Awards de 2008. É certamente um dos livros mais tristes que já li, briga com o mangá "O Cão que Guarda as Estrelas", de Takashi Murakami, lançado por aqui pela JBC, na disputa de "melhor HQ de cachorro para fazer marmanjo orgulhoso segurar o choro".

Tudo em nome do marketing

Kudriávka. Desta forma que a cachorra era chamada pelos pesquisadores. O nome Laika aparece pouco antes dela ser enviada ao espaço, decisão que fez parte de todo o marketing que envolveu a ação. Aliás, mais do que qualquer grande contribuição para a ciência ou para as pesquisas relacionadas à corrida espacial, a graphic novel mostra que a viagem sem volta de Laika serviu basicamente para promover o regime soviético, para provar a "superioridade do sistema comunista", como diz Khrushchov em um quadrinho.

"Talvez, se o voo de Laika tivesse sido adiado, Korolióv poderia ter desenvolvido uma maneira dela voltar segura para a Terra. Isso poderia ter colocado a União Soviética numa posição melhor no cenário global, mas duvido que fizesse muita diferença em como a história se desenrolaria. Quando se trata da corrida espacial, os russos estavam na liderança em 1957, e com alguma vantagem. Os Estados Unidos tiveram que trabalhar arduamente para recuperar o atraso", diz o autor sobre o momento da Guerra Fria retratado pela HQ.

Para construir a obra, Nick se apoiou em um arsenal de fontes que embasam toda a narrativa. Ao cabo, o que temos é a história de sofrimento de um animal que passa por diversas formas de tortura para, no fim, ser mandado para o espaço, tudo isso com os pesquisadores cientes de que aguentaria no máximo algumas horas fora da órbita terrestre e a certeza de que Laika jamais regressaria à Terra. Ao cabo, o que temos é a história de muitos cachorros sofrendo e uma cadela sendo sacrificada por conta da propaganda soviética, pelo marketing ideológico, pela vaidade dos homens.

No final do livro, há uma importante citação de Oliég Geórguievitch Gazenko, biólogo diretamente envolvido no projeto que vitimou Laika. Em 1998 ele assumiu: "Trabalhar com animais é um sofrimento para todos nós. Nós os tratamos como bebês que não podem falar. Quanto mais o tempo passa, mais eu lamento. Não aprendemos tantas coisas com a missão que justificassem a morte da cachorra".

A declaração ecoa no posfácio do volume, assinado pela escritora e tradutora Alexis Siegel: "Como mostra o depoimento de Gazenko, o valor científico da Sputnik II [nome missão que lançou Laika] foi mínimo e contribuiu muito pouco para o primeiro voo tripulado feito por Iúri Gagárin em abril de 1961. Até mesmo a propaganda foi alvo de protestos, pelo fato de condenar Laika à morte dentro de um foguete espacial. Na época, foi dito oficialmente que ela havia sobrevivido por quatro dias em órbita, mas na verdade o estresse e o superaquecimento da cápsula a mataram em menos de cinco horas".

"Dona Elena… Me tire daqui"

Boa parte da história de "Laika" é narrada pela perspectiva de Elena Dubrovskaia, veterinária responsável por cuidar dos cachorros utilizados pelos soviéticos nos insanos testes para o desenvolvimento de seus satélites. Os animais eram colocados em máquinas que os arremessavam para diversas direções, simulavam a gravidade zero e emulavam o que deveriam encontrar dentro da cápsula que levaria algum deles ao espaço. Enquanto nesses experimentos muitos beiravam a morte – e alguns de fato morriam -, Laika se mostrava mais forte do que os outros, característica decisiva para que se tornasse importante para a empreitada e, consequentemente, ficasse próxima a Elena.

Carinhosa e preocupada, a veterinária precisava disfarçar de seus colegas a compaixão e o amor que sentia pelos bichinhos. Por mais que tivessem lhe alertado que não deveria se apegar aos animais, a moça não consegue driblar seus sentimentos, que extravasam nos momentos que está a sós com os cachorros. Em certos trechos da HQ, quando Elena projeta seus pensamentos em Laika, a tristeza da narrativa é ímpar. "Dona Elena… Me tire daqui… Você pode me levar pra casa com você?", imagina a cachorrinha durante um sonho da veterinária, em uma cena de fazer marejar os olhos de qualquer um.

"Todos nós fazemos isso com animais de estimação, mas eles ainda se comportam como animais. No livro, Elena imagina vozes para os cães. Eu acho que qualquer ser humano que tenha empatia, simpatize ou cuide de pets faz isso porque entende que eles também têm emoções, algo que tentamos traduzir. Os animais não conseguem falar para explicitar seus sentimentos, então acabamos fazendo isso por eles", comenta Abadzis sobre o recurso.

Será que essa empatia e o avanço das bem-vindas pautas em defesa dos animais e da ética no relacionamento entre humanos e seres de outras espécies são suficientes para impedir que uma história como a de Laika se repita em nossos dias? Alguém no século 21 sacrificaria uma cadela para, basicamente, fazer propaganda de sua ideologia?
Abadzis lembra que muitos humanos, hoje, amam mais alguns animais do que seus semelhantes e pondera que o ideal seria que nos preocupássemos com todos os que são vítimas de maus tratos e expostos a sofrimentos.

"Precisamos ser mais conscientes das nossas emoções e daquilo que podemos causar aos outros, sejam humanos ou animais". O autor ainda recorda que, em 1957, quando o mundo descobriu que Laika havia sido condenada à morte ao ser enviada para fora da Terra, a história não pegou bem e que hoje em dia somente um louco poderia propor algo do tipo. "No entanto, acredito que vivemos em um mundo mais louco hoje do que em 1957, então, quem sou eu para dizer algo?".

Veja algumas páginas de "Laika" (clique nas imagens para ampliá-las):

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.