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Ainda falta muito para o Brasil se livrar da escravidão, afirma historiador

Rodrigo Casarin

15/08/2017 09h48

Quadro de Jean-Baptiste Debret.

"O escravismo sempre retorna. Ou nunca se vai".

As palavras são de Juremir Machado da Silva, escritor e jornalista, graduado em história pela PUCRS, mestre em antropologia pela UFRGS e doutor em sociologia pela Université Paris V – Sorbonne. Há pouco Juremir lançou o livro "Raízes do Conservadorismo Brasileiro" (Civilização Brasileira), no qual se apoia principalmente em discursos políticos e matérias jornalísticas do século retrasado para identificar como a abolição da escravatura no Brasil e, na sequência, a proclamação de nossa república aconteceram em um ambiente calcado no conservadorismo.

Para Juremir, o Brasil ainda é um país semelhante àquele do final do século 19. "Continuamos a ser uma sociedade de privilégios e de relações. Quem tem grandes amigos, pode mais. Quem tem dinheiro, muito mais. O topo da pirâmide brasileira é ocupado pelo homem branco, rico e doutor sem doutorado", diz em entrevista ao Página Cinco.

No papo, o pesquisador lembra que enquanto a abolição da escravatura era discutida, políticos queriam impedi-la alegando que aquilo poderia quebrar o país, discurso semelhante ao que encontramos hoje com relação às leis trabalhistas. "Mantemos a mesma lógica: a base deve sustentar o topo".

Juremir ainda fala sobre como se deu a abolição ("Depois de sugar os negros por quase 400 anos, a elite branca brasileira livrou-se deles como quem joga fora uma ferramenta superada por outra mais moderna e produtiva") e como falta muito para tenhamos um sistema que se afaste totalmente da escravatura. "Enquanto negros forem mais assassinados do que brancos, ganharem menos em funções equivalentes, ingressarem em menor número nas universidades, encherem prisões e forem insultados em estádios de futebol ou em redes sociais continuaremos numa espécie de escravidão".

Apesar da escravidão ter sido oficialmente abolida no Brasil em 1888, hoje ainda nos deparamos com notícias falando sobre trabalhadores em condições análogas às dos escravos, seja no campo brasileiro, seja em indústrias, seja com empregadas domésticas em casas de luxo – como recentemente foi noticiado a respeito de trabalhadoras filipinas. Quanto falta para que, de fato, acabemos com a escravidão?

Falta muito. Enquanto negros forem mais assassinados do que brancos, ganharem menos em funções equivalentes, ingressarem em menor número nas universidades, encherem prisões e forem insultados em estádios de futebol ou em redes sociais continuaremos numa espécie de escravidão. Na capa do jornal A província do Espírito Santo, de 11 de setembro de 1877, o negro era apresentado, numa falsa parábola, como invenção do diabo:

"No tempo da criação do mundo, Satanás vendo o Padre Eterno criar Adão, de um pedaço de barro, quis também fazer o mesmo.

Pegou num pedaço de argila, deu-lhe as mesmas voltas que vira dar-lhe Deus, e depois insuflou-lhe a vida num sopro. Mas com grande espanto e com grande raiva sua, esse bocado de barro, como tudo o mais que ele tocava, ficou negro: – o seu homem era um homem preto."

Ainda não nos livramos desse imaginário da diferença ignominiosa. O racismo só não é mais explícito neste momento pelo medo das punições. Ela agora se expande nos almoços dominicais e nos estádios de futebol longe das câmeras. Mas não sempre.

Aliás, socialmente, quanto o Brasil atual se parece ou se difere daquele do final do século 19?

Como diz a música, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais. Os políticos escravistas queriam impedir a abolição alegando que ela quebraria o país. O senador Paulino de Sousa, do Rio de Janeiro, criticou a Lei Áurea como inconstitucional, antieconômica e desumana. Exigia o respeito à propriedade privada previsto na Constituição. Denunciava os danos à economia e defendia, como outros, que os proprietários haviam agido de boa-fé, ao abrigo da lei, não podendo ser punidos pela falta de indenização. Reclamava-se responsabilidade no voto. A lei seria desumana por jogar no abandono os ex-escravizados. Não se queria, porém, gastar dinheiro com eles. Muitos foram os projetos, ao contrário, reclamando indenização para os senhores supostamente lesados pela abolição. Mantemos a mesma lógica: a base deve sustentar o topo.

A justiça foi ao longo do tempo escravista e classista. Serviu para acobertar os interesses dos proprietários de escravos. Quando surgiu um ativismo jurídico, interpretando leis em favor de escravos, houve uma grita. Nossas cadeias de hoje estão cheias de presos sem julgamento, mas se berra quando isso atinge um rico por uma prisão preventiva mais longa. Continuamos a ser uma sociedade de privilégios e de relações. Quem tem grandes amigos, pode mais. Quem tem dinheiro, muito mais. O topo da pirâmide brasileira é ocupado pelo homem branco, rico e doutor sem doutorado.

As atuais mudanças nas leis trabalhistas contribuem para que nos aproximemos ou nos afastemos de acabar com essas escravidões modernas?

A reforma da legislação trabalhista precariza as condições de trabalho em favor dos empregadores. Baseia-se numa ideologia dita modernizadora que retira conquistas. Faz crer que empregadores e empregados estão em pé de igualdade para discutir longe da lei. Ela dificulta o acesso à justiça, pesa a mão sobre o trabalhador que faltar a uma audiência, protege o patrão, idealiza relações que, na prática, são de imposição e temor. Um deputado do PSDB queria voltar definitivamente ao século 19 e legalizar o trabalho sem salário, em troca de comida e de alguma compensação não diretamente pecuniária. A legislação trabalhista vem sendo atualizada o tempo todo. É falso dizer que permanece intocada a de 1943. Os "especialistas" que defenderam a reforma na televisão para criar empregos passaram a falar diferente depois da aprovação: ela não criará empregos. A ideologia de que o trabalho deve custar o mínimo permanece a mesma. O ideal para nossos empregadores mais radicais é que ele nada custasse. O escravismo sempre retorna. Ou nunca se vai.

Como nossa sociedade atual reflete ou é impactada pela maneira que se deu a abolição da escravatura no país e a consequente inserção social dos negros?

Não existe determinismo histórico. Mas o presente é uma construção que se enraíza no tempo. Em certas sociedades, há grandes rupturas. A França passou por elas. O Brasil, não. As suas rupturas sempre funcionaram como continuidades disfarçadas. Os três séculos e meio de escravatura produziram uma sociedade de hierarquias variadas: trabalho, cor e relações. Ao longo do tempo, o trabalho foi considerado pelos brancos portugueses ou de origem portuguesa como coisa de negro. Cristalizou-se um imaginário do parasitismo, da exploração vil e total.

A imigração corrigiu-se em parte essa distorção. Brancos vieram trabalhar. Paradoxalmente a imigração aumentou o racismo. Não porque os imigrantes fossem necessariamente racistas. Acontece que a propaganda que justificou a troca do trabalho escravo pelo do branco imigrante baseou-se nas teorias racistas da época. Enfatizou-se a substituição de uma raça inferior por uma raça superior intelectual, moral e produtivamente. Caracterizou-se o negro, que tudo havia produzido no Brasil como preguiçoso, pouco inteligente, irracional e perigoso. A abolição empurrou para a marginalização toda uma população. Em vez de políticas de inserção, surgiram leis contra a vagabundagem. A lógica da abolição sem integração estimulou o preconceito, o ressentimento, a separação abissal entre negros e brancos e uma hierarquia baseada em títulos (o branco doutor, o negro serviçal), dinheiro, saber acadêmico bacharelesco e poder.

A dívida com os negros não foi paga. Ao contrário, ela só cresceu. Depois de sugar os negros por quase 400 anos, a elite branca brasileira livrou-se deles como quem joga fora uma ferramenta superada por outra mais moderna e produtiva. Os dados atuais do IBGE mostram todo dia o resultado dessa política infame de separação pretensamente sem barreiras. A população negra brasileira continua na base da pirâmide padecendo na ponta dos indicadores negativos. Toda política de compensação, como as cotas, é vista pelo conservadorismo branco como racismo invertido ou como atentado vitimista à meritocracia.

Se tornou comum ouvirmos discursos como "nasci há 20, 30, 40 anos, então não tenho nada a ver com quem foi escravizado, não tenho responsabilidade alguma sobre isso e nem devo nada aos descendentes de escravos, isso não impacta na minha vida". O que você pensa disso?

Se não temos responsabilidade individual, existe uma responsabilidade estrutural. O país é o que é como construção histórica. Por outro lado, temos responsabilidade individual sobre o presente: o que queremos? Um país desigual e racista? Ou um país mais justo e capaz de superar seu passado infame?

Joaquim Nabuco, um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos, talvez o maior, dizia que toda fortuna brasileira havia sido construída pelo braço escravo. Não há monumento histórico no Brasil que não tenha o suor e o sangue dos negros. Não enfrentar a marginalização dos negros significa perpetuar uma injustiça histórica. Não encarar a desigualdade implicar insistir numa fórmula social imoral. A escravatura baseou-se em todos os mecanismos que perpetuam a desigualdade no Brasil: leis iníquas, privilégios escandalosos, racionalizações infames, cupidez. As leis gradualistas para amenizar o pesadelo dos escravos não pegavam. A lei de 1831 abolindo o tráfico precisou ser refeita em 1850. Não se nascia livre pela lei do Ventre Livre. A liberdade só viria de fato aos 21 anos de idade. Não se ficava livre aos 60 anos pela Lei dos Sexagenários, mas aos 65. Políticos tiveram informações privilegiadas e hipotecaram escravos ao Banco do Brasil antes da abolição. Criou-se um Fundo de Emancipação cujo dinheiro foi desviado para campanhas políticas.

Não contamos nas escolas que alguns dos nossos grandes escritores foram escravocratas empedernidos como José de Alencar, que votou contra a Lei do Ventre Livre. Escondemos esse passado. 1888 é um ano esquecido pela história branca e menosprezado pela história negra, pois a história branca vendeu a ideia de que a abolição teria sido um presente da Coroa. Por que jornalistas escrevem sobre 1808, 1822 e 1889 e pulam 1888? Trata-se de uma data fundamental. O século 19 brasileiro começa em 1808 e termina em 1888. O ano de 1889 é consequência do de 1888. Precisamos recontar a história.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.