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Referência em história, Bernard Cornwell compara Donald Trump ao palhaço Bozo

Rodrigo Casarin

02/08/2017 09h53

A criação da Inglaterra atual, com a trama focada na saga do monarca Alfredo, O Grande, e de seus descendentes, encarada pela perspectiva de Uthred, um órfão que aparece criança e, na narrativa, cresce até se tornar um dos maiores guerreiros de seu tempo. É essa a história que Bernard Cornwell conta em "Crônicas Saxônicas", sua série mais famosa, que em 2015 ganhou adaptação para a tevê produzida pela BBC: "O Último Reino".

Um dos maiores nomes da literatura de ficção histórica, Cornwell já vendeu mais de 30 milhões de livros pelo mundo, sendo quase 1 milhão deles no Brasil. No começo do ano a Record publicou por aqui "O Portador do Fogo", décimo volume da saga "Crônicas Saxônicas". Mas essa não é a única série conhecida do autor. São deles títulos que frequentemente ganham destaque em livrarias, como volumes de "As Aventuras de Sharpe" e "A Busca do Graal".

Outra série renomada de Cornwell é "As Crônicas de Starbuck", cujo terceiro livro, "Inimigo", acaba de ser lançado no país também pela Record. A saga se passa na Guerra Civil Americana e acompanha um jovem capitão do norte do país que muda de lado e resolve batalhar pelo sul, onde colegas desconfiam que ele pode ser um espião enviado pelo exército inimigo.

Até quem faz uma análise superficial da obra de Cornwell nota que o autor tem predileção por um passado um tanto distante dos nossos dias – a Guerra Civil dos Estados Unidos, por exemplo, aconteceu entre 1861 e 1865, já o enredo de "Crônicas Saxônicas" se situa por volta do século 9. Na entrevista que fizemos por e-mail, no entanto, o escritor destacou dois pontos presentes em suas narrativas, especialmente nas "Crônicas Saxônicas", que continuam em voga no mundo atual.

"Não escrevo os livros como um reflexo consciente dos temas atuais, mas a história se repete constantemente. Suponho que dois aspectos históricos sejam mais ativos hoje. Primeiro, a questão da imigração. As sociedades tentam repelir ou receber os imigrantes? É claro que os dinamarqueses não eram bem-vindos porque invadiam os lugares com brutalidade, mas no final ficaram, foram integrados e se tornaram parte da nação inglesa, seus genes estão conosco", recorda, fazendo um paralelo com os ataques vikings ao território inglês então controlado pelo rei Alfredo.

Já o segundo aspecto levantado pelo autor é a religião e os conflitos decorrentes a partir de cada crença. "Hoje estamos lutando contra fanáticos que acreditam que o abate de crianças agrada seu deus. Percebo que quase todas as guerras acontecem por duas coisas: recursos e crenças. Ainda lutamos por recursos, seja terra, petróleo ou água, mas as batalhas por conta das crenças são muito piores. O único consolo que temos é que os perversos que matam indiscriminadamente acabarão no inferno, e espero que seja mesmo algo doloroso".

Além disso, Cornwell acredita que o próprio ser humano de hoje é o mesmo de outrora. "Não acho que a natureza humana mude. Isso permanece igual, ainda que hoje tenhamos uma estrutura jurídica que restrinja os piores aspectos de nossa natureza".

Shakespeare e Trump

Mas se o ser humano é o mesmo e as questões são parcialmente parecidas, as guerras modernas não poderiam servir de inspiração para alguma obra do autor? Não. "Realmente não estou interessado em escrever sobre guerras modernas. Sempre gostei de história e de ler romances históricos, e penso que os escritores escrevem sobre aquilo que gostam de ler. Então, ficarei com o passado". Mais do que isso, na visão do autor, o belicismo atual não tem o mesmo apelo literário das batalhas de outrora. "Não para mim, mas não posso dizer isso por mais ninguém", pondera.

Os interesses do escritor não se resumem às guerras, contudo. Cornwell lançou há pouco "Fools and Mortals", livro no qual imagina uma conturbada primeira encenação do clássico "Sonhos de Uma Noite de Verão" encarada pela perspectiva de um irmão de William Shakespeare, o grande dramaturgo inglês. "Gostei muito de escrever a obra, mas suspeito que será a minha única sobre Shakespeare". O escritor conta que o bardo é, muito mais do que uma inspiração ou influência literária, um nome fundamental para sua própria vida, para sua felicidade.

"Shakespeare é um homem surpreendente, um dos grandes gênios que entendeu profundamente a nossa alma. Passo meus verões no palco de um pequeno teatro em Cape Cod e na maioria dos anos nós encenamos alguma peça de Shakespeare. No verão passado, tive o prazer e o privilégio de interpretar Próspero, um dos grandes personagens do autor [de 'A Tempestade']. Não há nada como estar dentro de uma peça para entender e apreciar ainda mais quão brilhante foi William Shakespeare".

Cornwell é britânico, mas vive desde 1979 anos nos Estados Unidos. Aproveitando toda a bagagem cultural do escritor, perguntei ainda o que ele pensa do governo de Donald Trump e se ele compararia o presidente a algum personagem histórico. A resposta oscila entre a tragédia e a comédia. "[Poderíamos compará-lo ao] palhaço Bozo? Humpty Dumpty? Pinóquio? A República é forte e sobreviverá, mas, meu Deus do céu, que desastre!"

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.