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Romance que “capturou a humanidade”, Cem Anos de Solidão festeja cinco décadas em ótima forma

Rodrigo Casarin

31/05/2017 09h59

Uma criança que nasce com rabicó de porco. Um homem que tenta impedir que todas as casas da cidade onde mora sejam pintadas de azul, conforme deseja o governo. Uma moça extremamente bela, que tem quase todos os rapazes a seus pés, mas pouco liga para isso, quer apenas levar uma vida sem complicações. Esses são apenas alguns dos elementos presentes em "Cem Anos de Solidão", principal livro do colombiano Gabriel García Márquez, o Gabo, laureado com o Nobel de Literatura em 1982. Lançado pela editora argentina Sudamericana em 1967, o clássico que acompanha gerações da família Buendía na fictícia Macondo e que se tornou o grande símbolo do realismo fantástico e da literatura latino-americana na segunda metade do século 20 está completando 50 anos em ótima forma.

É justamente por ser uma metáfora para a condição histórica da América Latina que o livro se transformou em uma obra tão importante, apontada como a segunda mais relevante escrita em língua espanhola em toda a história, pareando com "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes. Traduzido para dezenas de idiomas e tendo vendido mais de 50 milhões de exemplares ao redor do mundo, o clássico de Gabo coleciona fãs como os ex-presidentes dos Estados Unidos Barack Obama, que o considera um de seus escritores favoritos, e Bill Clinton, que, quando soube de sua morte, disse: "Desde que li 'Cem Anos de Solidão', há mais de 40 anos, fiquei fascinado pela singularidade da sua imaginação, clareza de pensamento e honestidade emocional. Ele capturou a dor e o prazer da nossa humanidade".

Capa da primeira edição do clássico.

"Capturar a humanidade", outra das razões para que o livro tenha se tornado um gigante, é o que também aponta o escritor Francisco Azevedo, cuja admiração por Gabo o levou a criar o romance "Doce Gabito" (Record). "Sem dúvida alguma, foi com 'Cem Anos de Solidão' que García Márquez revelou o realismo mágico ao mundo, o consolidou como estilo e trouxe a atenção dos quatro cantos da Terra para a América Latina e sua gente. 'Cem Anos de Solidão' será sempre uma das maiores obras da literatura universal, não só pelas marcas do estilo que o consagrou, como também pelo aguçado espírito crítico da narrativa que, a partir da história dos Buendia, na imaginária cidade de Macondo, mostra mais que uma família e mais que um povo. Mostra a humanidade".

Indo na contramão de certa corrente da crítica que afirma que o realismo mágico está superado, Azevedo acredita que a obra-prima de Gabo nunca dialogou tanto com a arte e especialmente com a literatura quanto hoje. "Mais que nunca, em todas as manifestações artísticas, temos visto a fusão crescente entre o sonho e a realidade, o virtual e o concreto. O 'elemento mágico' continua presente nas obras de autores contemporâneos das mais diversas nacionalidades, como Mia Couto [moçambicano], Isabel Allende [chilena], Milan Kundera [tcheco], Salman Rushdie [britânico] e Haruki Murakami [japonês], só para citar alguns. 'Cem Anos de Solidão' permanece atualíssimo. Na forma e no conteúdo".

A primeira vez com "Cem Anos"

Ler pela primeira vez uma grande obra da literatura é sempre um acontecimento, tanto que é comum grandes leitores afirmarem que invejam quem ainda não teve o contato inicial com alguns clássicos, quem ainda não começou a descobrir e a se surpreender com a beleza de obras imortais. Conversando com escritores, "Cem Anos de Solidão" costuma ser um desses colossos que marcaram a trajetória de cada um enquanto amantes dos livros.

É o caso de Noemi Jaffe, autora de "Irisz: As Orquídeas" (Companhia das Letras), que leu o clássico de Gabo quando ainda era uma criança. "Me lembro de ter ficado muito impressionada porque um casal fica transando num banco durante vários dias seguidos e também porque todos tinham o mesmo nome e demoravam muito a morrer. Eu achava que tudo aquilo era verdade. Mas uma coisa bonita foi ter visto minha filha lendo o livro e gostando muito quando ela era adolescente. É bom ver os livros assim, passando de uma geração para a outra".

Capa da edição comemorativa que a Record está lançando em virtude do aniversário de 50 anos do livro.

Já Otávio Linhares, autor de "O Cão Mentecapto" (Encrenca), lembra do clássico como uma aula de história da América Latina. "Ele sintetizou maravilhosamente, de um lado, o macrocosmo dessa América com suas ditaduras e relações de poder corruptas, tiranas e usurpadoras, e de outro, microcósmica, e é aqui que o García Márquez é genial, falando das pessoas e de suas relações, de seus desejos e afetos, e de como essas relações desenharam e ainda desenham no espaço-tempo, o que somos. um livro pra ser revisitado inúmeras vezes".

Rafael Gallo, que assina o romance "Rebentar" (Record), aponta para a "um aspecto muito ancestral, quase mitológico, com um ar renovado" que Gabo conseguiu concretizar na obra. "As histórias e personagens são atávicas, na América Latina, especialmente, é como se sempre tivessem existido e por isso são familiares, no bom sentido. Mas, ao mesmo tempo, as construções imagéticas e o vocabulário são tão próprios do livro, que o efeito de frescor é muito forte. Acho que isso foi o que mais me marcou na leitura desse romance, o quanto a escolha de certas palavras pode dar uma carga diferente de texturas, coloridos e sentidos a determinadas cenas".

Para exemplificar, Gallo recorda da cena na qual a personagem Amaranta recebe Aureliano José em sua cama e sente "o castanholar de seus dentes". "O verbo traz toda uma carga de sensualidade e ímpeto, por sua relação prévia com a música e a dança. Não é só bater os dentes, é algo muito mais potente. Controlar a paleta de palavras dessa maneira é uma grande lição de literatura", explica.

Voltando a Azevedo, ele também aponta para a linguagem como um dos fatores que mais lhe impactaram na sua primeira leitura de "Cem Anos de Solidão". "Posso dizer que o que mais me marcou foi a poesia. Ali, o 'fantástico' de Márquez está impregnado de refinada poesia. É a poesia que o faz confessar que chorou copiosamente a morte do Coronel Aureliano Buendia, porque não havia mais jeito, tinha que matá-lo. É a poesia que o faz a acreditar que a imaginação é apenas um instrumento de elaboração da realidade, embora a fonte de criação seja a própria realidade. É a poesia que o levava a ter flores amarelas, de preferência rosas amarelas, em sua mesa de trabalho. Em 'Cem Anos de Solidão', essa sua poesia se manifesta em todo o romance, presente nas imagens, nas falas, no perfil dos personagens".

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.