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Do sagrado à pornografia, livro reúne poemas da “unicórnia” Hilda Hilst

Rodrigo Casarin

23/05/2017 09h28

Qual o lugar de Hilda Hilst na literatura brasileira?

A pergunta aparece na abertura de uma entrevista feita com a escritora por Vilma Arêas e Berta Waldman que está presente em "Da Poesia". O volume, que a Companhia das Letras acaba de publicar, reúne toda a obra poética da autora – até então dividida em mais de vinte títulos -, alguns poemas inéditos, material crítico e peças memorialísticas. Trazendo a pergunta para o presente, é Alice Sant'Anna, atual editora de Hilda na Companhia, que fala do papel da escritora em nossa literatura.

"A Hilda passou a vida toda querendo ser lida. Ela não se filiou a nenhuma escola, não fazia parte de nenhum grupo, ficou sempre num lugar muito único, à margem. Publicou por editoras pequenas que, apesar de terem feito um trabalho bonito e importante, alcançavam um público muito restrito. A coisa muda quando ela passa a ser lançada pela editora Globo, com organização do Alcir Pécora, que colocou a obra da Hilda em outro patamar no início dos anos 2000, pouco antes de ela morrer. Hoje, felizmente, a Hilda é adorara por uma legião de leitores, pesquisadores e admiradores que não para de crescer".

Hilda nasceu em 1930 e publicou "Presságio", seu primeiro volume de poemas, em 1950. Décadas mais tarde, no começo dos anos 90, resolveu largar a suposta "literatura séria" e apostar nos escritos pornográficos. Surge, então, sua tetralogia obscena, do qual fazem parte alguns de seus trabalhos mais famosos, como "O Caderno Rosa de Lori Lamby". Versos eróticos dessa fase final da carreira da escritora estão, claro, presentes em "Da Poesia", mas o leitor acostumado com uma Hilda sacana encontrará também uma poeta que explorou diversos outros temas.

Hilda e a amiga Lygia Fagundes Telles.

"A produção poética da Hilda muda bastante ao longo de 45 anos, principalmente quando ela passa a publicar ficção e teatro, no fim da década de 60. Mesmo que na década de 90 ela dê adeus ao que chama de literatura séria e passe a escrever pornografia, as dicotomias continuam presentes na sua poesia: a morte e a vida, o amor e a solidão, o sagrado e o profano. Nesse sentido, a pornografia e a formação religiosa tradicional poderiam ser entendidas como faces de uma mesma moeda na poesia da Hilda. Esses paradoxos tornam a obra dela muito interessante e complexa", aponta Alice.

Dentre os textos de apoio, uma preciosidade é o fragmento assinado por sua amiga e colega de escrita Lygia Fagundes Telles. "Fidelidade é qualidade de cachorro, sei disso porque passei a minha infância em meio da cachorrada, os gatos vieram depois. A Hilda (dezenas de cachorros) também conhece a espécie sem mistérios. Sabemos que eles nos amam com igual amor na riqueza e na pobreza, o que não acontece muito (ai de nós!) na espécie humana", escreve a autora de "As Meninas". "Da Poesia" ainda conta com um posfácio assinado pelo escritor Victor Heringer e uma carta de Caio Fernando Abreu na qual trata Hilda como "querida unicórnia".

Material inédito

Quem cuidou da seleção dos poemas, versões e trechos inacabados foi a pesquisadora e poeta Julia de Souza, que garimpou o material no acervo do Instituto Hilda Hilst, que funciona Casa do Sol, chácara próxima a Campinas para onde a escritora se mudou aos 35 anos. Por lá, passou o resto da vida em companhia de seus cachorros e se dedicando à literatura, até morrer em 2004.

Dentre os inéditos, Alice destaca "Para o Amigo Daniel", escrito em 1988 e dedicado a Daniel Fuentes, que na época era uma criança. Daniel é filho de Mora Fuentes, grande amigo de Hilda. Sociólogo, Daniel herdou os direitos autorais da escritora e atualmente preside o Instituto. "Ela fez parte da minha vida desde que nasci. Talvez tenha sido a pessoa que mais me deu presentes ao longo da vida, sendo que o último deles foi os seus direitos autorais. Aliás, este poema que foi descoberto recentemente é mais um desses presentes que me enchem de honra, mas também de responsabilidade, que no caso era encontrar caminhos para torná-lo público", comenta Daniel.

E, segundo o herdeiro, ainda há muito material inédito produzido por Hilda. "O Acervo do Instituto Hilda Hilst – a Sala de Memória Casa do Sol – é um acervo que guarda aquilo de mais pessoal que Hilda nos legou, a começar pela própria Casa, que é, em si, uma peça de acervo, passando pela riquíssima marginália de sua biblioteca particular, mais de 200 horas de áudio, muitos vídeos super 8 filmados lá nos anos 70, além de mais de 3 mil fotos e muitos outros escritos dos mais diversos. Lá dentro existem um incontável número de pérolas, das quais conhecemos apenas uma ínfima parte. São poemas inéditos, desenhos, pensamentos, anotações, cartas, diários, fotos, enfim, um universo inteiro ao redor do processo criativo de Hilda, o qual produziu sistematicamente pistas que hoje encontramos em nosso acervo".

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.