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“Avó” de Harry Potter fez série sobre bruxo órfão 29 anos antes de Rowling

Rodrigo Casarin

09/11/2016 14h25

Ursula K. Le Guin

Órfão de mãe, um menino descobre que possui poderes especiais e deixa sua rotina para entrar em uma escola de magia. Deslumbrado, torna-se uma pessoa impaciente, extremamente orgulhosa e acaba por despertar um grande mal capaz de abalar aquele novo mundo. Cabe ao garotinho, então, salvar o seu povo e, ao cabo, tornar-se uma lenda de tal universo mágico.

terramar1Não, não estamos falando de Harry Potter, mas de Ged, o protagonista de "O Feiticeiro de Terramar", de Ursula K. Le Guin, lançado em 1968, 29 anos antes de "Harry Potter e a Pedra Filosofal", e reeditado recentemente pela Arqueiro. Se em "Harry Potter e a Criança Amaldiçoada" a família de Potter fica ainda maior com Tiago Sirius, Alvo Severo e Lília Luna, os filhos de Harry, e se antes já sabíamos que o garoto é um rebento de Tiago e Lilian, não seria exagero, ainda que abusando de certa liberdade criativa para misturar pessoas reais com os personagens fictícios, colocarmos Le Guin como a avó do órfão criado na casa dos tios Valter e Petúnia.

Le Guin nasceu nos Estados Unidos, tem 87 anos e é um dos nomes mais importantes da literatura fantástica e da ficção científica, apontada como uma das responsáveis por tornar absurda a ideia de que tais gêneros são exclusivos para crianças e jovens. Complexas, suas obras apresentam influências ou abordam temas como o taoismo, anarquismo, sexismo e feminismo. Dentre seus títulos mais conhecidos estão os cinco do "Ciclo Terramar" – inaugurado justamente pelo volume já citado e seguido de "Os Túmulos de Atuan", "A Praia Mais Longínqua", "Tehanu, o Nome da Estrela" e "Num Vento Diferente" – e "A Mão Esquerda da Escuridão", de 1970, publicado aqui pela Aleph, vencedor, dentre outros, do prestigiado Hugo, uma das dezenas honrarias a autora já ganhou.

Reconhecida por George Martin, Neil Gaiman, Salman Rushdie…

Apesar de nomes de grande peso na literatura, como Neil Gaiman e George R.R. Martin, reconhecerem que são profundamente influenciados por Le Guin – veremos mais sobre isso abaixo -, Rowling jamais assumiu que a norte-americana poderia, de alguma forma, ter sido ao menos uma inspiração para que criasse o seu próprio universo mágico, em que pese as evidentes semelhanças entre os mundos e as histórias de Potter e Ged. Para a autora de "Ciclo Terramar", a escritora britânica é, no mínimo, "pouco generosa" por não costumar dar crédito a autores de fantasia que tenham a precedido.

maoesquerdaAo comparar as duas obras, Le Guin lembra que a ideia original de uma escola para bruxos não foi sua, cita que o britânico T.H. White já havia feito algo semelhante e afirma que Rowling seguiu uma linha diferente. "Ela não plagiou. Ela não copiou nada. Seu livro, na verdade, dificilmente poderia ser mais diferente do meu, em estilo, em espírito, em tudo. A única coisa que me irrita é a aparente relutância em admitir que ela já aprendeu algo com outros escritores. Quando críticos ignorantes elogiam sua maravilhosa originalidade ao inventar uma escola de magia – e alguns deles até parecem acreditar que ela inventou a fantasia -, ela deixa que eles o façam. Acho que isso era pouco generoso e, a longo prazo, imprudente", escreveu a norte-americana em seu blog.

O texto, aliás, é um longo artigo de Le Guin sobre a diferença na literatura entre copiar uma ideia e fazer algo que dialogue estreitamente com outras obras e autores. Ela mesmo, aliás, admite ter sido influenciada, dentre outros, por J. R. R. Tolkien e Philip K. Dick, de "Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?", que deu origem ao filme "Blade Runner". "Provavelmente, a maior coisa que aprendi com Phil foi algo que agora parece óbvio, mas não era: é possível incorporar o misticismo oriental em um romance ocidental sem soar como um guru ou parecer misticismo", registra.

No entanto, como já disse, se Rowling não assume publicamente que foi influenciada por Le Guin, outros grandes nomes o fazem. Segundo George Martin, as "Crônicas de Gelo e Fogo" poderiam sequer existir se não fosse por tudo que leu de sua conterrânea. Neil Gaiman credita a Le Guin a responsabilidade de lhe ser uma influência não apenas literária, mas quem despertou sua consciência política. Não bastassem esses dois colossos da literatura fantástica, escritores premiados e amplamente reconhecidos como David Mitchell, Zadie Smith, China Miélville e até Salman Rushdie já assumiram que devem muito à autora do "Ciclo Terramar".

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.