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Dante Alighieri regado a vinho? Historiador compila causos gastronômicos

Rodrigo Casarin

26/10/2016 13h32

 

Dante-Alighieri

Nápoles, 1309. Dante Alighieri, o autor de "A Divina Comédia", desperta a curiosidade de Roberto d'Anjou, o rei local, que convida o escritor para um jantar. Após uma longa viagem, Dante chega ao compromisso vestindo roupas simples e é colocado na "cauda da mesa", em um lugar "de pouca visibilidade e escasso prestígio", bem longe de onde o mandatário e os barões do reino estavam. Ignorado, levanta-se e vai embora assim que acaba de comer.

Lá pelas tantas, Roberto se lembra daquele seu convidado e pergunta por ele. Ao saber que Dante já tinha ido embora, manda que um mensageiro o alcance, peça-lhe desculpas e o convide para um novo jantar. O escritor aceita e desta vez se veste com garbo, apresenta-se ao rei "com grande cerimônia" e ganha um "assento de maior importância na geografia simbólica do banquete". Assim que servem a comida, no entanto, começa seu show. Pega a carne e esfrega pelas suas roupas. Banha-se com o vinho, bem como com a sopa. Atira às vestes qualquer alimento oferecido.

hisorias da mesaClaro que Dante causa muita estranheza e, ao ser questionado das razões para aquela grosseria, responde: "Sacra Majestade, reconheço que essa grande honra que me concedeste, concedeste-a às roupas; e assim eu quis que as roupas fruíssem os alimentos servidos". Em seguida, explica: "sou o mesmo do outro dia, com todo o meu discernimento, qualquer que seja ele. Mas no outro dia colocaste-me ao final da mesa porque estava malvestido; hoje, bem-vestido, colocaste-me à cabeceira".

Esse é um dos saborosos causos presentes em "Histórias da Mesa", lançado pela Estação Liberdade, do italiano Massimo Montanari, professor de história na Universidade de Bolonha, estudioso dos hábitos gastronômicos e autor, dentre outros, de "História da Alimentação" e "O Mundo na Cozinha". O título apresenta 22 narrativas breves ambientadas na Idade Média e no Renascimento, que evidenciam como as refeições extrapolam o simples ato de comer e muitas vezes se transformam em símbolo de poder ou em oportunidade para solidificar relações dos mais diversos tipos.

"A comida alimenta e a bebida mata a sede, mas comidas e bebidas são muitas outras coisas também. São formas de expressar pertenças, identidades, relações. São instrumentos de sociabilidade e comunicação. É por isso que toda narrativa sobre o alimento e a mesa possui uma densidade especial, uma trama de perspectivas que a enriquece de conteúdos e significados. Pois narram-se coisas que, por sua vez, narram. As narrativas sobre a mesa têm tanto a dizer porque é a própria mesa que narra. Ela narra a fome e as maneiras como o homem procurou transformá-la em ocasião de prazer. Narra a economia, a política, as relações sociais. Narra os paradigmas intelectuais, filosóficos, religiosos de uma sociedade. A messa narra o mundo", escreve o autor no prólogo

Massimo Montanari

Massimo Montanari

Montanari também aproveita o texto inaugural para fazer um alerta sobre o que virá a seguir: "Histórias verdadeiras e inventadas se alternarão, mas trataremos todas elas da mesma maneira: como histórias possíveis, espelhos de um mundo, de uma sociedade, de uma cultura. Pois o imaginário também faz parte – e como! – da realidade".

E então nos conta histórias protagonizadas por muita gente comum – com destaque para a quantidade de monges quase sempre gulosos, alguns que até queimam a boca por não esperar a lasanha esfriar – e de alguns personagens renomados, como o próprio Dante. Dentre estes, também vale mencionar a narrativa na qual Carlos Magno se surpreende ao provar um queijo branco e gordo que jamais tinha visto e a passagem sobre como São Francisco de Assis imaginava o Natal: um grande banquete, no qual os ricos fartariam de comida os pobres, os animais deveriam receber mais ração e, caso fosse possível, até as paredes comeriam carne. O que Francisco desejava mesmo, escreve o autor, era um "banquete cósmico".

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.