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Literatura indígena busca caminhos para ir além do infantojuvenil

Rodrigo Casarin

28/09/2016 11h01

Davi Kopenawa na Flip de 2014.

Davi Kopenawa na Flip de 2014.

Nos últimos anos a literatura feita por diversos grupos historicamente afastados dos holofotes plano ganhou espaço. Assim passamos a ouvir falar mais sobre literatura periférica, literatura negra e literatura feminina, por exemplo. No entanto, uma corrente que ainda carece de atenção é a literatura indígena (você mesmo, qual foi o último livro de um autor indígena que leu?). Para tratar desse tema e da cultura geral relacionada aos índios que o Itaú Cultural promove entre hoje, dia 28, e sexta, dia 30, em sua sede na avenida Paulista, em São Paulo, o "Mekukradjá – Círculo de Saberes de Escritores e Realizadores Indígenas", que reunirá pesquisadores e artistas que representam 11 etnias diferentes.

Daniel Munduruku.

Daniel Munduruku.

Apesar do interesse pela literatura indígena no país ainda ser baixo, ela vem em uma crescente desde os anos 1990, quando alguns autores passaram a escrever livros para jovens e crianças. "De lá para cá houve o crescimento da produção literária, o surgimento de autores e ilustradores indígenas, a participação em eventos literários, maior interesse do mercado editorial em obras de indígenas e houve o aumento do debate sobre a literatura indígena pelas universidades brasileiras", explica Daniel Munduruku, escritor, filósofo e doutor em Educação pela USP, um dos curadores e participantes do "Mekukradjá". Quando fala da participação em eventos literários, um bom exemplo foi a presença de Davi Kopenawa, autor de "A Queda do Céu", recentemente lançado pela Companhia das Letras, na Flip de 2014 .

Ailton Krenak, escritor e uma das maiores lideranças indígenas políticas e intelectuais que despontaram no final dos anos de 70, concorda com seu colega. "A literatura que se convencionou chamar de 'indígena' nasceu nas últimas duas décadas. Isso sugere que já ganhou muito reconhecimento, considerando que ainda temos poucos autores e que ainda engatinhamos na configuração desta escrita nascida da tradição oral".

Segundo ambos, um fator essencial para que a literatura indígena passasse a receber mais atenção foi a criação da Lei 11.645/08, sancionada em março de 2008 durante o segundo mandato do governo Lula, que incluiu no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena". No entanto, apesar de editais que incentivaram editoras a investir em livros do tipo e do assunto chegar às salas de aula, nem tudo foi positivo.

"Houve um boom no mercado editorial que produziu maciçamente livros ligados ao assunto. Contudo, muito do que foi publicado apresentava uma linguagem incapaz de superar os estereótipos e equívocos em torno das culturas ancestrais. Ou seja, o mercado não aproveitou a oportunidade para ajudar a sociedade brasileira a sair da visão genérica que sempre foi transmitida ao longo da história e que acaba colocando os indígenas como uma minoria desqualificada", aponta Daniel.

Ailton Krenak.

Ailton Krenak.

Além do infantojuvenil

Outra consequência de tal lei foi que, com o aumento da literatura indígena infantojuvenil, houve também um aumento da atenção da academia pelo assunto. Contudo, segundo o próprio Daniel, ainda seria preciso despertar nos mais velhos um interesse por livros do tipo, tarefa nem um pouco fácil. "Não vejo como aumentar o interesse das pessoas adultas na literatura indígena se elas não têm a cultura da leitura. Tal como sempre aprendi na tradição de meu povo, o aprendizado se dá pela repetição constante de uma prática", crê.

Para ilustrar sua posição, Daniel diz que "um caçador aprende com um caçador mais experiente; uma criança aprende ao ver os pais fazendo; um jovem aprende sua arte na medida em que é capaz de reproduzir a arte dos mais velhos e assim por diante. O Brasil tem uma cultura literária muito ligada à escola que, muitas vezes, obriga seus alunos a lerem obras que não escolheram. Isso, em vez de criar leitores, os afasta do gosto pela leitura. Então, particularmente não vejo como aumentar o lastro de interessados pela cultura indígena apenas pela leitura de livros. Junto com isso tem que haver ações que permitam que as pessoas comecem a questionar o tipo de informações que recebem, seja na escola, seja através dos meios de comunicação social. Agora, para aquelas pessoas que são leitoras de verdade, há muito o que aprender pela leitura de livros escritos por indígenas. Nem precisa ficar tão atento porque os textos gritam alto os saberes da tradição".

Ailton, no entanto, lembra que antes da onda de livros infantis, alguns autores como Kaká Verá e Olívio Jekupé já produziam livros "que iam desde a pesquisa e informação sobre as culturas indígenas até pelo prazer da leitura". Ainda cita o título "Metade Cara e Metade Máscara", de Eliane Potiguara, como sendo "desta fornada de narrativas que se dirigem a públicos diversos, sem fichamento como literatura infantil".

Além de Daniel e Ailton, o "Mekukradjá" – palavra de origem caiapó que significa sabedoria e transmissão de conhecimento – receberá nomes como o xavante Divino Tserewahú Tseptse, o cineasta Isael Maxakali, o escritor, educador, psicoterapeuta, ambientalista e conferencista Kaká Werà, o contador de histórias e pescador Roni Wasiry e o biblioteconomista e poeta Tiago Hakiy, dentre outros. A programação completa pode ser vista aqui.

quedadodceuDicas de leitura

Ficou interessado na literatura indígena? Daniel Munduruku indica três livros:

"O Trovão e o Vento", de Kaká Werá: "Trata-se de um livro que discorre sobre a fala sagrada dos Guarani. É um texto poético, autoexplicativo, suave e cheio de sabedoria. Escrito por um autor Tapuia que tem admiradores nos quatro cantos do mundo, o texto é rico de significados e vale a pena conhecê-lo".

"A Queda do Céu", de Davi Kopenawa: "Livro lindo. Reúne as falas do conhecido Davi Yanomami em que conta a saga de seu povo, o conhecimento que adquiriu, suas experiências com o ocidente, suas visões de mundo e sociedade. Talvez o maior e mais completo relato de um cidadão Yanomami oferecido a todos através do som da oralidade".

"Memórias de Índio", do próprio Munduruku: "Um passeio pela memória ancestral, permite conhecer a trajetória do autor, seu aprendizado, suas experiências e sua passagem pelo mundo ocidental contadas em forma de crônicas memorialistas. Vale a leitura".

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.