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Argelino cria história para o árabe assassinado em O Estrangeiro, de Camus

Rodrigo Casarin

10/09/2016 12h20

 

kamel daoud

"Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: 'Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames'. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem". O primeiro parágrafo de "O Estrangeiro", do franco-argelino Albert Camus, é um dos inícios mais marcantes da história da literatura e já deixa claro o quanto Meursault, o narrador e protagonista da obra, pode manter-se indiferente a qualquer acontecimento.

E se o título de "O Caso Meursault" já indica que o livro do argelino Kamel Daoud – vencedor do Goncourt de 2015 e que sai no Brasil pela Biblioteca Azul – dialogará com o clássico de Camus, o primeiro parágrafo explicita que o tom da nova narrativa será outro: "Hoje, mamãe ainda está viva". E Haroun, o narrador, continua: "Ela não fala mais, mas poderia contar muitas coisas. Ao contrário de mim, que, de tanto remoer essa história, já quase nem me lembro dela".

91BEwPUJDtL.SL720A história que Haroun remói é a do assassinato do irmão mais novo, Moussa, morto justamente por Meursault, o "herói" do livro do Nobel de Literatura de 1957. Se na obra de Camus a vítima é tratada apenas como mais um árabe anônimo, agora, no título de Daoud, o que temos é justamente a perspectiva daqueles próximos ao homem assassinado a tiros em uma praia deserta, sob um sol escaldante – para usar as próprias palavras de Meursault (ou de Camus).

Haroun conta a trágica história de sua família – a mãe passara boa parte da vida buscando pelo corpo do filho caído – enquanto conversa com um universitário de Paris em um bar de Orã, cidade no litoral da Argélia. De encontro em encontro, revela o que ficou oculto no livro de Camus. O morto anônimo daquela obra, por exemplo, nesta é definido como "um pobre analfabeto que Deus pôs no mundo, ao que parece, unicamente para levar um tiro de revólver e retornar ao pó, um anônimo que não teve nem sequer tempo de ter um nome".

Conforme reconstrói a maneira que ele e sua mãe lidaram com a tragédia, Haroun também traz a tona questões do colonialismo francês, como a maneira que se relacionavam com os próprios argelinos enquanto ocupavam o território na África. "Árabe. Eu nunca me senti árabe, sabia? É como a negritude, que só existe a partir do olhar do branco. No bairro, no nosso mundo, éramos muçulmanos, tínhamos um nome, um rosto e nossos costumes. E ponto final. […] Foi necessário, então, o olhar do seu herói para que o meu irmão virasse um 'árabe' e morresse por isso […]. Moussa bater a porta atrás de si, deixando sem resposta a pargunta que minha mãe fizera: 'Você vai trazer pão?'", aponta o narrador, primeiro mostrando como a presença dos estrangeiros fez com que mudasse a visão que tinha de si mesmo e depois indicando o momento que precede a tragédia de Moussa.

No entanto, a história não coloca simplesmente em xeque a moral de Meursault, mas acaba por questionar o comportamento do próprio homem quando a guerra pela independência da Argélia acontece e Haroun pode dar outro caminho para a vida de um francês quase anônimo. Além de criar um desdobramento com nova perspectiva para um dos maiores livros do século 20, "O Caso de Meursault" também pode ajudar a entender muitos dos problemas, principalmente os decorrentes da imigração oriunda dos países colonizados, que a França atravessa atualmente.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.