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Heroína gordinha? Mulheres e negros conquistam espaço nas HQs nacionais

Rodrigo Casarin

10/08/2016 14h46

carolina de jesus

Negra, pobre e moradora de uma favela na zona norte de São Paulo, Carolina Maria de Jesus foi um dos fenômenos literários do Brasil nos anos 1960. "Quarto de Despejo", livro de estreia no qual revelava o cotidiano do lugar onde vivia, fez sucesso e a projetou como uma das grandes escritoras do país. Agora, sua trajetória foi transformada em HQ por João Pinheiro e Sirlene Barbosa, que assinam "Carolina de Jesus em Quadrinho". O título biográfico da exponente da literatura marginal no país pode ser vista como um símbolo da diversidade e da representatividade que vêm ganhando espaço nessa arte nos últimos tempos por aqui.

No final do ano passado, mulheres protestaram contra a campaha de divulgação do Troféu HQ Mix, cujo conteúdo machista continha inclusive folder com uma moça de biquini e olhar provocante convidando para o evento. No Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, na França, neste ano, um dos mais importantes do mundo, houve boicote de nomes de peso como Milo Manara e Riad Sattouf por não haver nenhuma mulher entra os artistas indicados ao principal prêmio do evento, mostrando que o movimento extrapola nossas fronteiras. Ao mesmo tempo que as moças se manifestam e conquistam território em um mercado onde alguns ainda acreditam não pertencer a elas, os negros e periféricos também começam a dar as caras; querem ser mais do que somente um Jeremias, durante muito tempo o único personagem negro da "Turma da Mônica".

Ana Recalde.

Ana Recalde.

Comics é coisa de mulher…

Justamente para incentivar a participação das mulheres no mercado de quadrinhos que a quadrinista Ana Recalde fundou a Pagu Comics, selo que publica exclusivamente obras assinadas por moças. "As imagens definem muito da nossa vida, somos bombardeados por elas desde muito novos. Nesse sentido, não nos enxergarmos nos produtos e imagens que consumimos pode ser muito prejudicial. Notamos isso com muita clareza nas adolescentes de hoje, que precisam de validação o tempo todo. A fase da adolescência já é naturalmente cheia de inseguranças, adicionar a isso uma importância tão grande para como parecemos, cria um grupo muito infeliz de jovens. Por isso, nós que somos produtoras de conteúdo, precisamos pensar muito bem sobre que tipo de mensagem vamos passar com o nosso trabalho, e as imagens fazem parte disso", explica Ana.

Dentre as publicações da Pagu estão títulos como "As Empoderadas", de Germana Viana, lançado em parceria com a editora Cândido e o serviço de streaming de HQs Social Comics. Na obra, três mulheres comuns ganham superpoderes e se tornam justiceiras após um fenômeno solar. Outros trabalhos que a editora publicará em breve também apresentarão personagens com tipos bem diferentes das garotas hipersensualizadas, de seios fartos, cintura fina, quadril largo e roupa sumária, comumente vistas em diversas HQs, como uma heroína um pouco mais gordinha.

Quimera

"Criar heroínas que fogem dos padrões estéticos que mais vemos pode dizer para uma garota parecida com ela que é possível! Que existem pessoas como aquela personagem no mundo que podem fazer a diferença. Começar a valorizar os nossos corpos é um primeiro passo para sermos seres humanos mais felizes", diz a editora.

Ela mesmo, aliás, sofreu um choque quando lhe alertaram que o seu "Beladona", feito em parceria com Denis Mello e vencedor do prêmio HQ Mix de 2014 como melhor Web Quadrinho, era protagonizado essencialmente por brancos. "Se a gente que notou algo não tentar mudar, imagina quem não notou ou acha que esses problemas sequer existem", comentou recentemente Ana, em um evento em São Paulo promovido pelo Itaú Cultural, sobre a importância de se atentar o olhar para questões relacionadas à diversidade e representatividade.

…e graphic novel também

Quem vem apostando em quadrinhos feitos por mulheres há algum tempo é a Nemo, que já publicou importantes nomes da cena ncional, como Bianca Pinheiro, Fernanda Nia, Fefê Torquatto e Lu Cafaggi, e também trouxe ao país alguns destaques estrangeiros, como Céline Fraipont, Sibylline, Margaux Motin, Pénélope Bagieux e Julie Wertz com obras que abordam temas como radicalismo religioso, totalitarismo político, o machismo e o assédio sexual, drogas e homossexualidade. "Essa opção não é um acaso, mas sim uma linha editorial desejada, planejada, pensada", garante Arnaud Vin, editor da casa.

Além de dar espaço para essas mulheres, com graphic novels Arnaud procura romper com a hegêmonia de publicações norte-americanas, especialmente de super-heróis, que dominaram o mercado de quadrinhos no país durante muito tempo. "Quisemos oferecer novas temáticas, novas sensibilidades, buscar novos leitores e, principalmente, novas leitoras. Nada de mais gratificante para nos de receber depoimentos de leitoras que descobriram o mundo dos quadrinhos lendo pela primeira vez uma das nossas graphic novels".

O editor explica que essa pluralidade é essencial para se combater uma espécie de "pensamento único" que toma conta da sociedade e para "lutar contra os censores de plantão que estão nos cercando cada dia mais". Na visão de Arnaud, "sem pluralidade não existe espaço para o diálogo, a controversa, o confronto das ideias. Não há como andar para frente, é a escuridão, o retrocesso".

Marcelo D'Salete.

Marcelo D'Salete.

Os negros e periféricos

E se Carolina Maria de Jesus levou a favela para a literatura e recentemente teve sua vida transformada em uma HQ, o quadrinista Marcelo D'Salete, por sua vez, retrata nos quadrinhos histórias da periferia e ligadas a temas relacionados aos negros. Em "Cumbe", por exemplo, outro publicado pela Veneta, abordou o período colonial e a resistência à escravidão no Brasil. Em "Encruzilhada", lançado em 2011 pela Leya e recentemente relançado também pela Veneta, por sua vez, constrói diversas histórias que se passam pelas "quebradas" de São Paulo.

Marcelo esteve presente no debate do Itaú Cultural junto com Ana e, na oportunidade, revelou que tratar do racismo e assuntos afins ainda é visto como um tabu e cabe à arte, dentre outras frentes, levantar os debates que podem incomodar aqueles acostumados a ocupar os lugares de destaque. "Os quadrinhos brasileiros estão passando por um momento efervescente de produção. Grande parte disso acontece de modo independente, mas acaba influenciando o meio editorial como um todo. Os editores acabam ficando atentos a todo esse movimento. Se tivermos pessoas de diferentes origens produzindo HQs, podemos deixar todo a ambiente ainda mais complexo em termos de temas e formas narrativas de HQs, buscando novos públicos também", acredita.

No entanto, muto ainda precisa ser feito para que cada minoria política também tenha sua vez frente aos holofotes. "Isso é uma construção social e histórica que depende do amadurecimento, interesse e discussão de cada grupo", diz. "Apenas como exemplo inicial, observo poucas obras retratando, por exemplo, os grupos indígenas atuais e suas histórias. O André Toral fez ótimos trabalhos sobre esse tema já, mas é preciso muito mais para se ver e discutir". Isso porque o caminho para a real diversidade é um processo que não pode parar logo nas primeiras vitórias.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.