Topo

Ana Cristina Cesar está no mesmo patamar de outros homenageados da Flip?

Rodrigo Casarin

21/06/2016 09h57

ana cesar

"Expoente da geração da Poesia Marginal, Ana C. criou uma escrita atravessada por elementos do cotidiano e aspectos de sua intimidade. Além da poesia, dedicou-se à crítica e à tradução literária, tendo traduzido Emily Dickinson, Sylvia Plath e Katherine Mansfield. Revelou seu estilo informal em diários, poemas, cartas e inclusive desenhos. Ao homenageá-la, a Flip traça uma linha de continuidade com a programação do festival, que vem ajudando a revelar ao grande público múltiplas vozes da poesia brasileira".

É esse o argumento da organização da Flip (Festa Literária de Paraty) para escolher Ana Cristina Cesar, a Ana C. como homenageada da 14ª edição do evento, que começará no dia 29 de junho e irá até o dia 3 de julho na cidade do litoral fluminense. Mas além de poeta, crítica literária e tradutora, quem foi exatamente Ana C.?

Uma mulher que nasceu em 1952 no Rio de Janeiro, começou a brincar de fazer poesia com quatro anos, perto dos dez criou um jornal infantil em sua escola, passou pelas Igrejas Metodista e Presbiteriana e estudou um ano na Grã-Bretanha com bolsa de um programa de intercâmbio destinado a jovens cristãos. Fez faculdade de Letras, deu aulas de português e inglês e desempenhou atividades jornalísticas. Também estudou cinema e trabalhou na Globo, no Departamento de Análise e Pesquisa. Era próxima a alguns outros grandes escritores de sua geração, como Caio Fernando Abreu. Tinha uma personalidade que muitos definem como emotiva, sensível e inquieta. Suicidou-se aos 31 anos, atirando-se da janela do apartamento onde seus pais moravam, no sétimo andar de um prédio em Copacabana.

correspo incomEm meio a tudo isso, escreveu muito, ainda que não tenha publicado tanto assim. Em vida, Ana C. lançou "Cenas de Abril", "Correspondência Completa", ambos de 1979, Luvas de Pelica, de 1980 – estes três de forma independente – e "A Teus Pés", de 1982, com poemas inéditos e uma reunião dos trabalhos independentes, que saiu pela Brasiliense e agora ganhou uma reedição pela Companhia das Letras. Além disso, dentre outros póstumos, em 2013 foi publicado "Poética", uma reunião de sua obra lírica completa, e recentemente, pela E-Galáxia, o livro de cartas "Correspondência Incompleta".

Nesses títulos que estão os motivos para que Ana C. fosse escolhida como homenageada da Festa. Segundo Heloísa Buarque de Hollanda, escritora, pesquisadora e crítica literária, o que há de mais preciso na obra da poeta é "o trabalho delicadamente radical com a linguagem". Heloísa, que estará em uma das mesas da Flip, também editou e foi muito próxima à escritora, que aponta como "uma das maiores poetas de sua geração, que hoje permanece sendo uma grande expressão literária feminina".

Já Armando Freitas Filho, poeta, curador da obra de Ana C. e que estará na mesa de abertura da Flip, diz ficar impressionado pela "fabulosa maneira" que a artista lidava com três "matrizes triviais": a carta, o diário e a conversa. "Ela partia desse amálgama, da imanência para a transcendência e obtia resultados originais, e, por isso mesmo, inesperados. Lógico que a grande literatura entrava com seu valioso quinhão. Ana Cristina foi uma refinada leitura", diz ele. "Conseguir fazer uma obra com apenas quatro livros magros é uma façanha e tanto", completa.

Silviano Santiago, escritor e crítico literário, é outro nome que ao falar sobre as principais características do trabalho de Ana C. lembra de como a moça era boa leitora de poetas nacionais e estrangeiros e dedicava algum tempo também a ensaios sobre literatura e poesia. Além disso, o que os escritores de hoje poderiam aprender com ela? "Disciplina nas horas de trabalho e de folga. Um ligeiro e alvissareiro desvario de vez em quando. Desatar os nós das confusões armadas pela imaginação ou pela escrita poética com a ajuda das ideias e da poesia alheia. Alguma ou muita ambição de vencer. O que, nesse contexto, pode significar também: alguma ou muita ambição de perder", enumera Silviano, para quem o que há de mais precioso na obra da homenageada é "a alta voltagem poética alcançada por seus poemas. Poesia é, antes de mais, mágica".

ana cesar 1Mesmo patamar de Clarice, Machado e Drummond?

Apesar de todos elogios, um questionamento parece inevitável: Ana C., nome indiscutivelmente menos conhecido do grande público, está no mesmo patamar de outros escritores homenageados pela Flip, como Machado de Assis (em 2008), Carlos Drummond de Andrade (2012) e Clarice Lispesctor (2005)? Heloísa Buarque de Hollanda é monossilábica em sua resposta: "sim". Armando, por sua vez, diz que "a boa literatura não se faz por patamares, se faz por necessidade, e a obra de Ana Cristina Cesar é tão necessária quanto a dos autores citados".

Paulo Werneck, curador da Flip e responsável direto pela escolha de Ana C. como homenageada, seguiu caminho semelhante em sua resposta. "A homenagem da Flip não é um ranking de escritores. Pelo contrário, queremos afastar a ideia de um Panteão, queremos trazer os nossos grandes autores para perto do leitor. Além disso, a ideia de 'patamares' literários é questionável e muda conforme o tempo histórico. No começo do século 20, considerava-se que Coelho Neto estava no mesmo 'patamar' de Machado de Assis. Olavo Bilac, se bobear, estava num 'patamar' acima de Machado. Em meados do século 20, Augusto Frederico Schmidt era posto mesmo 'patamar' de Drummond, que hoje claramente é reconhecido como poeta maior. Os 'patamares' não formam um sistema estável", posiciona-se.

Paulo ainda diz que a escolha de Ana Cristina tem a intenção de "pôr em questão esse cânone moderno" e também homenagear a poesia contemporânea, a literatura pós-moderna, que, segundo ele, está "claramente" situada em um patamar diferente em relação a esse mesmo cânone. "Detonar Ana Cristina e sua geração, que em sua vida e obra corajosamente romperam com padrões intelectuais, ideológicos e de comportamento, é um sinal claro de ferrugem intelectual. E também tem a ver com o machismo e o conservadorismo na literatura, é a velha recusa a aceitar outras sensibilidades literárias, já enfrentada antes por Clarice Lispector. Sintomaticamente, sempre são homens os que vaticinam contra a sua poesia, tachando-a de 'menor' com brados categóricos que jamais dirigem a autores homens".

Silviano, por sua vez, preferiu não responder a pergunta.

a teus pesVeja três poemas de Ana C.:

"Último Adeus I"
Os navios fazem figuras no ar
escapam a cores – os faunos.
Os corpos dos bombeiros bailam
no brilho dos meus pés.
Do cais mordo
impaciente
a mão imersa
no faróis.

"Sábado de Aleluia"
Escuta, Judas.
Antes que você parta pro teu baile.
A morte nos absorve inteiramente.
Tudo é aconchego árido.
Cheiro eterno de Proderm.
Mesa posta, e as garras da vontade.
A gana de procurar um por um
e pronunciar o escândalo.
Falar sem ser ouvida.
Desfraldar pendengas: te desejo.
Indiferença fanática ao ainda não.

"Que Desliza"
Onde seus olhos estão
as lupas desistem.
O túnel corre, interminável
pouso negro sem quebra
de estações.
Os passageiros nada adivinham.
Deixam correr
Não ficam negros
Deslizam na borracha
carinho discreto
pelo cansaço
que apenas se recosta
contra a transparente
escuridão.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.