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Escritor transforma confusão com justiça em livro com formato de inquérito

Rodrigo Casarin

19/04/2016 10h17

Lias

Foto: George Leoni

Em 2014 o escritor Ricardo Lísias se envolveu em uma situação que beira o surreal: foi acusado de falsificar documentos por conta de decisões judiciais que criou como parte da narrativa da série "Delegado Tobias", publicada pela E-galáxia. A Procuradoria Geral da República realizou uma investigação prévia do caso, mas não percebeu que a peça se tratava de uma obra de ficção e abriu um inquérito contra o autor, que foi convocado para depor na Polícia Federal e passou a responder formalmente por "falsificação de documento público". Somente no último dia 6 que a justiça reconheceu o erro que era importunar um escritor por causa de sua ficção e arquivou o processo.

"Tive várias sensações durante todo o caso. No início, fiquei espantado e achei engraçado. Logo, porém, notei como é grave termos instituições jurídicas que investigam obras de arte sem sequer perceber que são obras de arte. Fiquei então bastante abatido, não exatamente com o que poderia acontecer comigo (pediam se não me engano 6 anos de prisão), mas com o que eu tinha descoberto", lembra Lísias. "Meu trabalho não tinha a intenção de ''enganar'' a justiça. Eu não podia imaginar que por conta dele eu teria que contratar advogados e ir depor na Polícia Federal. Sem dúvida nenhuma, foi uma perda de tempo e de dinheiro público, mas a criação da jurisdição era necessária. As pessoas que me denunciaram com o intuito de me criar problemas acabaram fazendo um favor à arte brasileira", acredita.

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Foto: George Leoni

Resolvida a situação, o autor transformou o imbróglio em arte. "Inquérito Policial – Família Tobias" é o livro-objeto que Lísias lançará ainda este mês pela Lote 42. A obra será apresentada ao leitor exatamente na forma de um inquérito e trará uma narrativa que remonta a trajetória da família do personagem que tanta dor de cabeça causou ao escritor, que diz ter vários motivos para transformar o que passou em ficção.

"É preciso que fique registrado que tudo isso foi produzido pelo Poder Judiciário brasileiro – digo inclusive a parte boa do processo todo, o texto final solicitando o arquivamento redigido por um promotor é brilhante –, o que significa inclusive uma denúncia. E nada melhor que a arte para essa tarefa. Depois, como escrevo obsessivamente todos os dias, a redação se incorporou ao meu cotidiano criativo. Por fim, o trabalho serviu não apenas para que eu refletisse sobre a minha defesa, mas ele mesmo é também a minha defesa: aqui está um inquérito ficcional e isso não é de nenhuma forma um crime".

Como é de praxe na obra de Lísias, "Inquérito Policial – Família Tobias" traz traços fortemente ancorados em nossa realidade. Os próprios editores da Lote 42 – João Varella, Cecilia Arbolave e Thiago Blumenthal -, por exemplo, surgem como personagens da narrativa. Essas pessoas, aliás, tiveram um papel fundamental para que o livro tomasse seu formato final, conta Lísias.

"Foi um trabalho intenso. Depois que o texto estava preparado, começamos as conversas com a Casa Rex, dirigida pelo designer e escritor Gustavo Piqueira. Ele então tomou a frente na preparação do trabalho, cuidando não apenas da diagramação, mas dos recortes diferentes de papel, da capa cuidadosa, das imagens e inclusive das letras e fontes. De fato é um trabalho que envolve muita gente, não sei se é totalmente honesto dizer que sou o único autor. Enfim, trata-se de uma obra literária ou, segundo me explicaram, de um 'livro de artista'".

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Foto: George Leoni

Cautela ao analisar a própria obra

Falando sobre a história em si, no entanto, Lísias diz estar em uma fase cautelosa no que diz respeito a interpretar suas próprias criações. Membros da família Tobias, por exemplo, são apresentados como pesquisadores de Gustave Flaubert. Por quê a escolha pelo francês?

"Eu não sei. Tenho atualmente muito receio de tentar interpretar minha própria criação. Já fiz isso mas depois tudo se mostrou muito diferente do que eu tinha pensado. Vou dar um exemplo concreto para não parecer que estou de má vontade; para mim, o 'Delegado Tobias' era um texto sobre, entre outras questões, fofoca e boataria. Mas não, na verdade ele tratava da precariedade das instituições brasileiras. Então, não me sinto confortável para interpretar meus próprios textos ou sequer oferecer algum possível caminho de leitura e interpretação".

A cautela se repete na hora de Lísias avaliar como "Inquérito Policial – Família Tobias" se encaixa em sua trajetória enquanto escritor. "Do mesmo jeito, eu já não me arrisco dizer. Eu tenho uma visão orgânica da criação, tento ter coerência no tratamento das questões que me importam: o Brasil, a América Latina, as instituições, o poder, a corrupção da vida cotidiana, os desarranjos psíquicos e talvez sobretudo as possibilidades expressivas da literatura ou agora mais amplamente das artes em geral".

Peça de teatro

Além do livro, a situação que Lísias viveu com a justiça também virará a peça "Vou, Com Meu Advogado, Depor Sobre o Delegado Tobias", redigida pelo autor enquanto também escrevia o novo livro. As apresentações acontecerão no Sesc Ipiranga nos dias 13, 14 e 15 de maio e terão os atores Clayton Mariano como delegado, Eduardo Climachauska como advogado e o próprio Lísias interpretando Ricardo Lísias.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.