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Pobreza e abuso norteiam “Quarenta Dias”, eleito o livro do ano pelo Jabuti

Rodrigo Casarin

04/12/2015 09h18

mvl

E Maria Valéria Rezende levou o Jabuti de Livro do Ano de Ficção pelo seu "Quarenta Dias". Já era de se esperar, seria muito difícil que o prêmio não fosse para ela ou para Carol Rodrigues, de "Sem Vista Para o Mar", que já havia sido agraciado pela Biblioteca Nacional.

"Quarenta Dias" esteve em alguma evidência desde que foi lançado. Na semana passada, em um perfil que escrevi de Maria Valéria, muito já foi dito sobre ele. O foco da história está em Alice, idosa com duas aposentadorias que deixa João Pessoa para viver em Porto Alegre, onde se embrenha na busca por Cícero Araújo, alguém que sequer conhece, a pedido de uma amiga, Elizete, colega da mãe do desaparecido.

Capa 40 dias.inddPerambulando pela periferia da capital gaúcha, a protagonista nos revela um cenário de pobreza onde pessoas passam por problemas diversos e absurdos, mas também estão dispostas a, de alguma forma, ajudar os outros, o que parece ser comum a todo Brasil. "Engraçado é que eu tinha a impressão de, afinal, quase nada ver de tão estranho assim, neste Sul tão longe de casa, o povo misturado de todas as cores, os petiscos de pobre, aquele tanto de negros gaúchos que eu nunca soube que existiam, violência e solidariedade, pobreza e necessidades, iguais às da minha terra, a pedir milagres", constata Alice.

O nome da personagem não é mero acaso. Tal qual sua xará de Lewis Carroll, a Alice de Maria Valéria se enfia em um buraco que a coloca em contato com um mundo diferente daquele que conhecia – a própria autora, aliás, fez algo semelhante para escrever a obra e viajou da Paraíba para o Rio Grande do Sul para passar dias pelas ruas porto-alegrenses perguntando por alguém que não existia.

E o que move a protagonista a aceitar empreender a busca? Nem ela sabe ao certo. "Talvez tenha sido o nome estranho do lugar que me despertou da letargia. Talvez tenha sido, sem que eu percebesse, a dor da outra mãe tomando o lugar da minha, um alívio esquisito, uma distração, e eu quis, sim, sair por aí, à toa, por ruas que não conheço atrás do rastro borrado de alguém que nunca vi. Afinal, Barbie, isso quase podia ser um resumo de qualquer vida quando começa, sair por aí, a ganhar o mundo, à toa"

Velho caderno

Tudo isso nos chega porque a protagonista registra sua história em um velho caderno de moldura rosa e com uma Barbie na capa. É com a imagem da boneca – algo que está ali sempre disposto a escutar, que não fala, não interrompe ninguém e, principalmente, não perturba e nem é inconveniente – que Alice dialoga para dividir muito de suas angústias. É a maneira que encontra para aplacar sua solidão e não sufocar com suas memórias e inquietações. "Ninguém vai ler o que escrevo, mas escrevo. É a única maneira de voltar inteiramente, se é que ainda dá pra fazer meia-volta-volver", registra sobre a possível volta à Paraíba. "Escrever, seja lá o que for, me acalma, já me aliviou um pouco o sufoco, até bocejei", eterniza em outro.

Em um dos momentos mais curiosos de seus desabafos, Alice queixa-se com a boneca da capa de seu caderno do linguajar contemporâneo. "Barbie, ninguém mais 'calça' os sapatos ou as meias e nem 'veste' a camisa, a calça, o vestido? Todo o mundo agora só 'coloca' seja lá o que for, onde for… ninguém mais 'ouve' nada, só 'escuta', inclusive 'escuta, de repente, um ruído'… como se pode escutar sem querer ouvir, Barbie?, pela sua cara acho que você também não sabe a diferença… ninguém mais 'diz' nada, só 'fala'. E como fica o dito 'fala, fala e não diz nada'? E as palavras reformadas, que nem o verbo 'rolar' que substituiu o 'acontecer'?, tudo rola, festa, namoro, casamento, aula, prova, emprego. Vão entender se eu disser que rolei uma escada ou ladeira, ou terei de dizer, perdão, Barbie, de falar que 'aconteci' ladeira abaixo?".

A outra camada de "Quarenta Dias"

Se essa é a camada mais evidente de "Quarenta Dias" – uma ótima camada, diga-se -, há uma outra que talvez tenha passado desapercebido por muita gente que leu o romance até aqui. Alice aceita procurar por Cícero porque já está em Porto Alegre, mas ela não se mudou para lá por vontade própria. Não queria deixar a Paraíba, mas sua filha, Norinha, seu genro -residentes na capital gaúcha -e algumas pessoas próximas a importunaram tanto que se sentiu praticamente obrigada a deixar a cidade onde vivia e cruzar o país para ajudar a cuidar do netinho que nasceria dali algum tempo.

"Aquela canseira foi me amolecendo, dia a dia, me dando uma desistência, e nem lembro direito se foi a própria Norinha ou sua aliada-mor, Elizete, quem me arrochou num canto da parede: Você vai pra Porto Alegre, sim, e não se discute mais isso, todo mundo vê que é o melhor, é sua obrigação acompanhar sua filha única, só você é que não aceita, parece um jumento empacado na lama, continuar com uma besteira dessas. Eu cedi, vergonhosamente. Foi isso. O resto é consequência", lamuria a personagem que até então se recusava em se tornar "avó profissional".

Não bastasse essa espécie de chantagem emocional profundamente embasada no senso comum de que há alguma obrigação das avós em ajudar a criar seus netos – se quiserem, ótimo, mas quem deve cuidar dos rebentos são os próprios pais -, a violência não termina por aí. Já com idade avançada, Alice precisa deixar a cultura onde vive de lado para ser praticamente largada à deriva em outra.

Nesse aspecto, a mudança abrupta se torna ainda mais dramática para a protagonista, mas não irei me estender para que evite revelar mais sobre o enredo. Fica o registro, no entanto: se "Quarenta Dias" é um livro sobre a pobreza da cidade revelada por uma busca – elemento comum a outros respeitáveis títulos contemporâneos, aliás, como "Rebentar", de Rafael Gallo, e "Enquanto Deus Não Está Olhando", de Débora Ferraz, que resenhei dias atrás -, é também sobre a maneira abusiva com que muitos filhos tratam seus pais.

"Assumi, consciente e disciplinadamente, a atitude, que eu já vinha ensaiando havia algum tempo, do ET ingênuo sendo bem recebido por terráqueos benevolentes, muito maiores que ele. Eu continuava a encolher", queixa-se Alice. E ninguém merece, ao final da vida, sentir-se um ET, sentir que está encolhendo, muito menos quando a própria cria lhe causa isso.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.