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Álcool, depressão e desaparecimento marcam livro vencedor do Prêmio SP

Rodrigo Casarin

01/12/2015 08h55

Debora

"É como se… Como se Deus… ― calculou novamente, olhou pra mim, nos olhos, sem mover a cabeça, voltou a olhar pra baixo, caçando as palavras no chão… como se Deus tivesse piscado o olho, virado pra espantar uma mosca e aí, nesse momento de desatenção, enquanto ele não tava olhando, o mundo muda completamente, só que ninguém nota".

deusolhandoO piscar de olhos divinos que acaba por mudar todo o mundo de Érica, moça de 24 que sonha em ser artista plástica, trabalha como assistente de ilustradora e protagoniza e narra "Enquanto Deus Não Está Olhando", é quando descobre que seu pai, Aluízio Valentim, fugiu do hospital no qual estava internado. Ninguém sabe para onde foi o homem de 48 anos e é em cima desse sumiço que a pernambucana Débora Ferraz constrói o romance que já havia lhe valido o Prêmio Sesc de Literatura de 2014 e com o qual acaba de ganhar também o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante com Menos de 40 Anos.

Em um primeiro momento, as recordações que Érica tem de seu pai não são das melhores. Homem rude, que reclamava de viajar com a filha só porque da cabeça dela caiam muitos cabelos, achava uma grande besteira a menina querer ser artista. Alcoólatra, costumava beber um engradado inteiro de cerveja sozinho e chegava a passar dias fora de casa porque, de tão embriagado, sequer conseguia encontrar o caminho de volta ao lar. Mas isso não impede que a protagonista sinta sobremaneira o sumiço de seu pai e se empenhe em descobrir seu paradeiro, evidentemente.

Aluízio que encabeçava a família e seu salário de funcionário público que garantia o funcionamento da casa, então, não demora para que problemas financeiros e estruturais surjam na residência. Mas quando o pai está perdido, como reagir com lógica a uma conta de água alta, por exemplo? Como, apesar do susto, pensar em verificar se há vazamentos em algum canto enquanto por todos os cantos há a falta de um ente querido que não se sabe onde está?

Compreensível que um quadro depressivo assole toda a família de Érica. Sua mãe dobra a quantidade de cigarros que fuma e alterna dias ultra-atarefados com outros que sequer tira a camisola, seu irmão vive em uma "espécie de autismo opcional". A situação da narradora não é diferente: ausência do trabalho, sinusite, crise de pânico… Vamos percebendo e entendendo tudo que aflige a protagonista conforme suas conturbadas memórias são apresentadas, revelando não apenas a relação com o pai, mas também a dificuldade da menina em compreender que precisa encarar a vida adulta.

Érica encontra algum apoio em Vinícius, amigo de escola que não via há cinco anos, mas que prontamente aceita lhe ajudar a procurar pelo desaparecido. Falham. Conforme o drama aumenta, a menina, tal qual o pai, tal qual seus amigos, passa a se consolar no álcool. Chega ao ponto de inventar que é superstição de ano-novo matar uma garrafa de vodca; se não vomitar, os desejos serão realizados.

As bebedeiras não fazem com que supere o trauma pelo desaparecimento, é claro. Com o passar do tempo, as memórias a respeito do homem vão se tornando melhores, mais carinhosas, e a ansiedade a cada toque de telefone diminui – praticamente não há mais chances de ser ele. No entanto, o fantasma de Aluízio permanece presente na mesma proporção que o homem está ausente. A falta de uma explicação para seu fim leva Érica a desejar, sonhar ou delirar com a morte do pai – recurso muito bem executado, que nos remete aos cadernos de Jurandir em "O Sonâmbulo Amador", romance premiado do também pernambucano José Luiz Passos -, o que colocaria ponto final à agonia. Fica claro que para a garota é melhor a certeza de um corpo no caixão do que a eterna dúvida de onde o desaparecido está. Faz sentido, tal sumiço se assemelha mesmo à morte de alguém que permanece vivo, algo muito mais trágico e incompreensível do que a morte em si.

A tragédia particular, no entanto, acaba aproximando Érica do desejado trabalho com as artes plásticas e aí uma passagem do início do romance faz todo sentido: "Não haveria Van Gogh se não houvesse depressão no mundo. Não existiria Gaugin se as famílias permanecessem juntas. Era isso. O mundo se reorganiza". O mundo se reorganiza e os sofrimentos que deixam pessoas à deriva também podem lhes empurrar para novos caminhos na vida – algo nem sempre positivo, vale deixar claro -, como Débora soube muito bem mostrar nesse denso "Enquanto Deus Não Está Olhando", merecidamente premiado, que nos apresenta uma promessa para nossa literatura.

Também ganharam o Prêmio São Paulo Micheliny Verunschk, com "Morte de Uma Santa Suicida", na categoria Melhor Autor Estreante com Mais de 40 Anos, e Estevão Azevedo, com "Tempo de Espalhar Pedras", eleito o Melhor Livro do Ano. O anúncio dos vencedores aconteceu na noite dessa segunda-feira, dia 30.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.