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Cercado de polêmica, novo livro de Harper Lee chega ao Brasil em outubro

Rodrigo Casarin

15/07/2015 11h53

Harper Lee

O novo livro de Harper Lee, autora do clássico "O Sol é Para Todos", chegará ao Brasil em outubro pela José Olympio com o título "Vá, Coloque um Vigia", retirado de um versículo da Bíblia (Isaías 21:6). A opção será adotada em todos os países nos quais a obra, publicada originalmente como "Go Set a Watchman", será traduzida.

"Go Set a Watchman", segundo romance da escritora, foi lançado oficialmente em inglês ontem, após 55 anos da publicação de "O Sol é Para Todos". Considerado um dos acontecimentos mais importantes da história editorial, o novo título sai pela Harper Collins com tiragem de dois milhões de exemplares e fez com que livrarias dos Estados Unidos, Irlanda e Reino Unido abrissem à meia-noite para que fãs pudessem adquirir o livro. Em Monroeville, no Alabama, Estados Unidos, cidade natal da autora, 400 pessoas aguardaram durante a madrugada pela abertura de uma livraria para comprar seu exemplar do título, causando um movimento semelhante aos lançamentos de fenômenos pop da literatura ou de disputados gadgets.

Além de grandes números, o novo livro de Lee, que hoje tem 89 anos, vive em uma clínica para idosos e tem a saúde extremamente debilitada, também vem acompanhado de uma polêmica. Após o lançamento de sua obra-prima a autora havia afirmado que não gostaria de voltar a publicar. Em entrevista para a Folha no início deste ano, após o anúncio de que um novo livro de Lee seria lançado, Charles Shields, um de seus biógrafos afirmou que ela já não está em "condições de dar um consentimento para a publicação de nada" e que alguém estaria se aproveitando de sua fragilidade.

Esse alguém seria sua própria advogada de Lee, Tonja Carter, uma das únicas pessoas com acesso à escritora e quem achou "Go Set a Watchman" entre os arquivos de sua cliente – encontrou também o que pode vir a ser o terceiro romance de Lee. Especula-se que Tonja teria aproveitado o momento para lançar a obra à revelia da real opinião da autora.

Contrariando o artista

Independente do que esteja de fato por trás do lançamento de "Go Set a Watchman", o momento parece oportuno para se discutir a legitimidade da publicação de obras sem o consentimento de seus autores. Se o artista escreve algo – ou pinta, fotografa, filma… – mas não quer que isso venha à público, é correto que, quando não tenha mais domínio de fato sobre o que fez, alguém divulgue esse seu trabalho?

De cara, diria que não. Com a pessoa ainda viva, esse não se torna absoluto, inegociável. Após sua morte, a princípio, continuo achando bastante imoral e antiético esse tipo de publicação, principalmente quando movida simplesmente pelo interesse do mercado, pela relevância comercial. No entanto, alguns casos históricos mostram que desobedecer o artista morto pode se tornar uma enorme contribuição às artes e ao próprio artista.

Para ficarmos em apenas um exemplo, "O Processo" e "O Castelo", dois dos principais livros de Franz Kafka, um dos mais importantes autores do século 20, foram publicados após a sua morte. São títulos essenciais, que em muito agregam à valiosa obra do tcheco, que não os publicou em vida por revelar fatos que lhe eram constrangedores. Nesse caso, então, os fins justificaram os meios.

Com certeza, enquanto o artista vive, só deve ser publicado aquilo que ele realmente deseja que chegue ao público. Após sua morte, ao meu ver, sua vontade deve prevalecer, mas até a página dois – e aqui que mora o grande problema. Se o que deixou inédito for de grande relevância artística – com toda a subjetividade que cerca o termo -, deve sim ser publicado.

Ainda não li a nova obra de Lee. Se saiu sem o seu consentimento, repudio. Se for de fato uma obra de arte, que alguém publicasse após sua morte – de preferência um bom tempo depois, para não soar como oportunismo.

Força da alta literatura

O lançamento de "Go Set a Watchman" também nos permite uma constatação: a alta literatura ainda tem capacidade de atrair multidões, por mais que muitos preguem sua morte ou ostracismo. O sucesso de Lee foi construído com base apenas em "O Sol é Para Todos", livro de 1960 que vendeu mais de 40 milhões de exemplares pelo mundo e valeu o Pulitzer de 1961 à autora. Obra sobre o racismo nos Estados Unidos, tornou-se um clássico apontado como o melhor romance do século 20 pelo Library Journal e um dos 100 melhores livros de língua inglesa pelo Modern Library.

É ótimo, então, ver que após mais de cinco décadas do lançamento de seu até então único e célebre livro – que foge um tanto do que hoje é tido como altamente vendável -, Lee continue chamando a atenção de tanta gente, provocando tanto alvoroço. É um alento que "Go Set a Watchman" saia com tiragem de dois milhões de exemplares, o que automaticamente coloca Lee nas listas de best-sellers do momento, sempre tão carentes de nomes que possam lhe abrilhantar.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.