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Ana Luisa Escorel: é preciso rever a acolhida da ficção feita por mulheres

Rodrigo Casarin

26/06/2015 12h22

Ana Luisa Escorel

Ana Luisa Escorel surpreendeu o meio literário ao vencer o Prêmio São Paulo de Literatura de 2014 com "Anel de Vidro", seu primeiro romance (que está entre minhas leituras preferidas deste primeiro semestre), lançado pouco antes de completar 70 anos – ela nasceu em 1944. Não que tenha sido o seu livro de estreia, veja bem. Antes já havia publicado obras sobre design, sua praia de formação, e "O Pai, a Mãe e Filha", livro no qual relata as memórias da convivência com seus pais, a filósofa Gilda de Melo e Souza e Antonio Candido, um dos maiores mestres da literatura brasileira.

Ana estará na Flip deste ano – que homenageia Mario de Andrade, seu primo por parte de mãe – onde participará da mesa "Amar, verbo intransitivo", na sexta, junto da escritora israelense Ayelet Waldman. Antes de Paraty, a escritora conversou com o UOL e falou sobre seu romance, a importância do texto, o momento das mulheres na literatura e, claro, Mario de Andrade.

Em "Anel de Vidro" os personagens não são nomeados. Por que essa opção? Em sua cabeça eles possuem nomes?

Não. Não possuem nomes em lugar nenhum. A intenção foi tentar refletir sobre certas circunstâncias e sobre a influência destas circunstâncias no comportamento de quem está envolvido nelas. Os personagens, sua psicologia e embates emocionais contam menos do que as situações com as quais são confrontados seja em decorrência de decisões próprias, seja em decorrência de decisões de outros a que estejam afetivamente ligados.

No mesmo livro, o espaço que os empregos ocupam na vida dos personagens é bastante grande e acontecimentos essenciais se dão no ambiente profissional ou no seu entorno. Ao seu ver, como a questão do trabalho, da vida profissional, da influência desse tipo de ambiente sobre as pessoas está retratada na literatura?

Me parece que o ambiente de trabalho é, sim, muito retratado pela literatura – em todas as épocas e lugares – já que ele contribui muito para o desenho psicológico dos personagens e também para ambientar a ação. Trata-se de um recurso importante do romancista na tentativa de criação dos mundos paralelos, próprios da literatura de ficção.

Você já declarou em entrevista que o que importa é o texto. Qual a relevância de se participar de um evento como a Flip, então?

Talvez essa afirmação, descolada do contexto em que foi feita, não tenha ficado clara. Como você sabe, existem escritores das mais diferentes tendências e personalidades. Os que valorizam a trama, os que valorizam o assunto, os que tentam de todas as formas se aproximar do que entendem ser o repertório corrente e há aqueles, como eu, para quem a escrita é o eixo de tudo. Meu interesse repousa no texto, em seu ritmo e em trabalhar a ligação entre as palavras e as frases com as quais busco sonoridades que não machuquem o ouvido. Deve ser por conta desse cuidado com a escrita, inclusive,que eu tenha ido parar na na Flip.

Seu primeiro romance foi publicado quando você estava prestes a completar 70 anos. Por que levou tanto tempo para fazê-lo?

Existe uma zona de mistério em torno de situações pouco usuais, como ocorre com essa. A gente tenta entender, explicar – para si própria e para os outros – mas os meios de que dispomos não chegam a dar conta. Então fica-se aventando um tanto de hipóteses – de cunho racional ou não – quando, talvez, o que devesse ser considerado, fosse a possibilidade de que, num dado momento, num caso como esse, tenha havido uma certa afrouxada do super-ego que teria aberto espaço para o inconsciente se manifestar.

Você ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura de 2014 e ganhou destaque por ser a primeira mulher a conquistá-lo. Recentemente escritoras venceram as duas categorias do Prêmio Sesc. Como você vê a participação das mulheres na literatura brasileira hoje?

Vejo como natural na medida em que ela traduz a progressiva ascensão feminina, iniciada aqui principalmente a partir da segunda metade do século passado, e traduz também a presença crescente e maciça da mulher em todos os setores da vida de nosso país. Então, não poderia ocorrer de forma diferente na literatura. Agora, o que talvez precisasse de certa revisão é a acolhida ao texto ficcional das mulheres. A se tomar como base as premiações para romances, existentes no Brasil, a gente pode constatar a porcentagem mínima de mulheres vencedoras. E, francamente, me parece pouco provável que exista tamanho descompasso entre a qualidade da produção masculina e a qualidade da produção feminina a ponto de, ao ganhar um prêmio importante, nas categorias conto ou romance, qualquer uma de nós acabe virando manchete na imprensa, de norte a sul do Brasil.

Quais são os planos futuros para a Ouro Sobre Azul, sua editora?

Antes de mais nada torná-la mais robusta financeiramente do que tem sido, num mercado no qual o tipo de trabalho que nos caracteriza não encontra grande ressonância junto ao mercado embora seja sempre muito bem recebido pela imprensa e pelo um público culto, digamos assim. Depois, alargar a área de atuação da editora entrando pela ficção e pelo livro infantil.

Ao escrever, quanto pesa ser filha do Antonio Candido? Aliás, o que é ser filha de um mestre da literatura como ele?

Em meu pai as qualidades humanas pesam muito mais que as qualidades intelectuais. Então é muito bom ser filha dele que consegue transmitir ao ambiente familiar uma doçura, uma tranquilidade, absolutamente essenciais para o equilíbrio de cada um de nós, filhas, genros, netos e bisnetos. Agora, no tocante à escrita, o texto tem para ele uma função completamente diferente do que tem para mim. Para ele, é veículo de pensamento, para mim, veículo de expressão. Então, em nossas conversas sobre literatura, ele estará sempre situado em um ângulo diferente do meu o que, para mim, é muito estimulante.

Você também é prima do Mário de Andrade. Qual a sua relação com a obra e a figura dele? Como a carta que ele escreveu ao Manuel Bandeira, revelada recentemente, repercutiu na família?

Começando pelo fim da pergunta e falando apenas por mim: nada do que está expresso nessa carta ao Manuel, aliás de maneira oblíqua e um pouco soterrada, como ocorre frequentemente nos textos de Mário, chegou a me surpreender. Até porque não vejo ali revelação nenhuma. Apenas a expressão de uma personalidade assombrada por conflitos que aparentam ter sido para ele, e durante a vida toda, de convivência muito difícil.

Quanto à experiência com a obra dele, li Mário na adolescência e nunca mais reli. Prefiro sua prosa à sua poesia que me soa um pouco irregular. Não cheguei a conhecê-lo pessoalmente, para minha tristeza, embora tenha me relacionado estreitamente com sua figura através da lembrança sempre apaixonada de minha mãe, filha espiritual dele, que o trazia sempre para o cotidiano da nossa casa.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.