Topo

“Marcelo, Marmelo, Martelo” X “Harry Potter” - quem leva a melhor?

Rodrigo Casarin

06/05/2015 14h25

marmelopotter

Na semana passada, uma declaração de Ruth Rocha dizendo que "Harry Potter" não era literatura rendeu – e ainda rede – muitas reclamações pela internet. Ao mesmo tempo, as discussões foram poucas. Raros discordaram da autora, uma das mais respeitadas que temos hoje no Brasil, com argumentos, preferiram a rebaixar como artista ou como pessoa, algo que acaba mesmo é por diminuir quem a ataca.

Então, os editores aqui da casa sugeriram que eu fizesse um comparativo entre o livro mais famoso de Ruth, "Marcelo, Marmelo, Martelo", que a autora considera "mais literário que 'Harry Potter'", e a saga do bruxo escrita pela inglesa J. K. Rowling. São obras completamente diferentes, o que fez com que eu titubeasse um pouco, mas, ao cabo, cá estou, topando o desafio.

Antes qualquer coisa, acredito que duas ponderações precisam ser feitas. Primeiro, são livros escritos para públicos diferentes: "Marcelo, Marmelo, Martelo" é literatura infantil, enquanto "Harry Potter", a rigor, é literatura juvenil – tá, eu sei que muitos adultos o leem e o amam de paixão, mas é, originalmente, juvenil.

Segundo, em entrevista aqui mesmo para o UOL logo após a polêmica ganhar as redes, ao explicar porque "Harry Potter" não era literatura, Ruth disse que "literatura é arte. Inclui linguagem, sentimento, emoção. Um modo de ver a vida. Uma série de coisas que, quando preenchida, se torna arte ". É uma definição possível, mas tão possível quanto inúmeras outras sobre o que é literatura.

Para chegarmos a uma conclusão para "o que é literatura?", antes teríamos que responder de maneira definitiva outra pergunta: "o que é arte?". Há bibliotecas inteiras de livros que tentam, de alguma forma, dar uma resposta a essa pergunta, mas até hoje a questão está longe de se esgotar. Arte – e literatura, por extensão – é subjetiva e, exatamente por isso, não há como reduzi-la a uma definição, objetivá-la. O dia que isso acontecer, a arte acaba – ou a resposta estará errada, o que é mais provável. Tudo isso para dizer que toda discussão sobre se algo é arte – ou literatura – está fadada a não terminar, a não se chegar a um consenso, ainda que o debate, com exposição de argumentos (veja bem, argumentos, não achismos, xingamentos ou afins) das partes envolvidas, seja extremamente válido e enriquecedor.

Dito isso, vamos ao Harry e ao Marcelo.

Penso que toda discussão se deu porque Ruth citou uma obra extremamente bem quista por seus leitores, que tem fãs aos montes espalhados por todo o mundo. Se dissesse que "A Bicicleta que Tinha Bigodes", do excelente autor angolano Ondjaki, não é literatura, não teríamos todo esse alvoroço. "Harry Potter" marcou profundamente uma geração de leitores e continua cativando tantos outros. Ao mesmo tempo, "Marcelo, Marmelo Martelo" está na memória, principalmente afetiva, de muitos, é uma lembrança querida que vem da infância. Pessoalmente, a leitura da obra, na terceira ou quarta série, me marcou para o resto da vida. Ainda no meu caso, os livros de Rowling não ficam para trás. Li "Harry Potter" na juventude e até hoje tenho bastante simpatia pela história e por alguns de seus personagens – Hagrid e Dumbledore, especialmente. Enfim, tanto um quanto outro estabeleceram uma forte relação afetiva com seus leitores, o que apenas apimenta o debate.

Essa é uma das poucas semelhanças do comparativo, contudo. Enquanto a história de "Harry Potter" se estende por milhares de páginas divididas em sete livros, "Marcelo, Marmelo, Martelo" é um único volume com pouco mais de 60 páginas, sendo que a narrativa sobre Marcelo ocupa um terço delas – há ainda outras duas histórias no livro. Um vasto romance contra uma coletânea de três contos breves e ilustrados, em suma. A diferença nas cifras levantadas pelos livros é tão gritante quanto o tamanho das duas obras, mas não entrarei nessa questão, números de vendagens e a grana arrecadada com elas são critérios artísticos desprezíveis – sequer são critérios, para dizer a verdade.

Os enredos também são bastante distintos: Harry precisa garantir a sua sobrevivência ao mesmo tempo que luta contra o mal, já Marcelo – e irei me ater apenas a esse conto do livro de Ruth -, somente atormenta a vida de seus pais com perguntas, quer saber de onde vem o nome das coisas.

Ao olhar para os protagonistas, mais diferenças: Marcelo é uma criança livre e questionadora, Harry, enquanto criança, alguém literalmente reprimido e aprisionado – em um armário, no caso. Fixo-me nesse primeiro momento da obra de Rowling porque é quando seu personagem está com a idade mais próxima da de Marcelo. Claro que Harry muda, evolui, cresce, vive dramas e se torna alguém muito mais complexo – complexidade que se estende a diversos coadjuvantes relevantes, bem construídos, algo do qual o livro de Ruth carece.

Do mesmo jeito que é imprescindível termos em mente que "Harry Potter" é voltado para o público juvenil, enquanto "Marcelo, Marmelo, Martelo" é para o público infantil, não podemos esquecer que o primeiro é um romance, o segundo, um conto. O tamanho e a complexidade do enredo do primeiro é tão mais vasto que o do segundo quanto a diferença entre uma casa comum – onde a narrativa de Marcelo se passa – e um gigantesco castelo construído em um lugar mágico, que ainda tem um trem que te leva para o mundo real (ou seja, dois universos diferentes). A abrangência de tempo também é tremenda: enquanto acompanhamos toda a vida escolar de Harry, presenciamos apenas um instante da infância de Marcelo.

Por fim, a linguagem. Ruth tem um cuidado ao lidar com as palavras muito maior do que Rowling, que apresenta uma escrita que parece apressada, pouco lapidada, que peca pela repetição e pelo excesso: para ela, tudo precisa ser escancarado. A sutileza, a metáfora, a mensagem das entrelinhas, o que há além da história em si, está muito mais presente em "Marcelo, Marmelo, Martelo" do que em "Harry Potter".

E sendo a linguagem o fator decisivo para a literatura, acho "Marcelo, Marmelo, Martelo" superior a "Harry Potter", mesmo levando em conta as inúmeras diferenças entre ambos. Contudo, a obra de Rowling tem suas qualidades e sim, a considero literatura – o leitor mais atento notou que já deixei isso claro no terceiro parágrafo, quando me referi a ela como "literatura juvenil".

Agora, o que não tem necessidade alguma é de massacrar Ruth Rocha ou sua obra. A escritora apenas expôs sua opinião e questionou a qualidade artística do trabalho de Rowling, mas ressaltou a importância da saga junto aos jovens e na formação de leitores. Vamos com calma, com argumentos. Há espaço para "Marcelo, Marmelo, Martelo" e "Harry Potter" na estante de todo mundo, no coração e, principalmente, na cabeça de todo mundo.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.